Junto de Curupira, Iara, Boitatá e outros, o menino de uma perna só e gorro vermelho, ao mesmo tempo que é querido por parte considerável da população do país, ainda enfrenta a criminalização por parte de alguns setores – Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Celebrando a cultura popular brasileira, 31 de outubro é o Dia do Saci, figura com origens indígenas que é associada às travessuras e esperteza, mas também à proteção do meio ambiente. Junto de Curupira, Iara, Boitatá e outros, o menino de uma perna só e gorro vermelho, ao mesmo tempo que é querido por parte considerável da população do país, ainda enfrenta a criminalização por parte de alguns setores.
Mouzar Benedito, jornalista, escritor e um dos fundadores da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), explica que um dos motivos da divisão entre os que defendem e os que repudiam essa figura está em uma de suas características mais fundamentais: a vocação para a liberdade.
“Ele é um ser libertário, que não aceita a dominação. Os poderosos nunca gostaram desse tipo de gente. A história mais aceita diz que, quando ele foi transformado em negro, foi escravizado por um fazendeiro. Ele era mantido à noite com a perna presa por grilhões de ferro na senzala. Uma noite, ele cortou a perna para fugir. Ele preferiu ser um perneta livre do que um escravo de duas pernas”, destaca, em entrevista ao programa Conversa Bem Viver , do jornal BDF.
Benedito explica também que, por mais que o Pererê seja o mais conhecido, existem inúmeras outras representações de sacis, que guardam relação com as características e diversidades do povo brasileiro.
“Em um lugar, diziam que Saci era um diabinho, maldoso. No outro, falavam que era um gozador. Além do Pererê, tem o Saçurá, que é mestiço, o Trique, que anda pulando pela floresta, o Saci-Açu, que tem quase um metro de altura, o Saci Mirim, etc. Mas ele sempre é protetor da floresta. O Saci tem várias características em relação ao brasileiro. É um gozador, brincalhão e alegre, que era uma característica do brasileiro, antes do surgimento dessa trolha que é o extremismo de direita raivoso”, explica.
Brasil de Fato – Quem é o Saci?
Mouzar Benedito – Na verdade, são muitos sacis, porque tem sacis variados por todo lugar e várias espécies. O mais famoso é o Pererê, o que a gente conhece mais. O Saci é um personagem de origem indígena que surgiu entre os povos guaranis na divisa do Brasil, Paraguai e Argentina, na região de Mata Atlântica. Ele era um curumim, um menino bonzinho que costumava retirar as pessoas perdidas na floresta.
Os europeus sempre souberam, por exemplo, que uma forma muito eficiente de dominar um povo é destruir a cultura dele. Então, com a colonização europeia, eles começaram a destruir a cultura e a mitologia indígena aqui, transformando tudo em diabo. O Saci foi transformado em diabinho pelos europeus, pelo colonizador.
Na época da escravidão, transformaram ele em negro, para piorar o mau conceito sobre ele. E depois, com o tempo, introduziram nele também o gorrinho vermelho, que é típico de alguns mitos europeus. Inclusive, durante a Revolução Francesa, os republicanos usavam o símbolo do gorrinho igual ao do Saci. Então, o Saci é uma síntese do povo brasileiro, que tem o indígena, o negro africano e o europeu, que são os três povos que colonizaram o Brasil.
Às vezes ele aparece mais brincalhão, associado à travessura e à esperteza, mas, em alguns casos, o Saci também é tido como um grande protetor das florestas. O que essas diferentes representações indicam sobre a diversidade brasileira?
Quem primeiro levantou sobre essa variedade de formas com as quais o Saci se comporta foi Monteiro Lobato. Em 1900 e pouco, ele era colunista de um jornal chamado Estadinho e frequentava a praça em frente à Estação da Luz, lugar onde a burguesia paulista frequentava.
Lá tinham jardins maravilhosos, com laguinhos, e era cheio de nibelungos, fadas e gnomos. E Lobato falou: “Pô, caramba, parece que eu estou na Escandinávia. Cadê o Saci? Cadê o Curupira? Cadê a Iara?”. Ele voltou indignado para o jornal, onde tinha uma coluna, e pediu para os leitores escreverem para ele: “Escuta, onde você mora tem o Saci? Como ele é? Como ele se comporta? O que ele faz?”.
Choveram cartas para ele. Em um lugar, diziam que Saci era um diabinho, maldoso. No outro lugar, falavam que era um gozador. Ele pensava no Saci Pererê, mas em alguns lugares o pessoal fala, por exemplo, que tem um chamado Saçurá, que é mestiço.
Tem também o Saci Trique, que anda pulando pela floresta. Quando ele vai quebrando os galhos, faz trique, trique, pisando, quebrando os galhos. Tem o Saci-Açu, que é o maior, com quase um metro de altura. Tem ainda o Saci Mirim. Em cada lugar, ele tem um tamanho.
Agora, essa característica de protetor da floresta, ele sempre teve, porque é natural da floresta da Mata Atlântica e mora na floresta. Ele acabou sendo urbanizado em alguns casos, por aparecer na cidade, mas ele é um ser da floresta. É um símbolo da defesa do meio ambiente.
O Saci tem várias características interessantes em relação ao brasileiro. Por exemplo, o fato de ele ser negro já é um motivo para preconceito contra ele por racistas. O fato de ele ser perneta é outro motivo para ele ser vítima de preconceito. E ele é pobre, só aparece na televisão de calção porque não pode aparecer pelado, mas ele é pobre.
E, apesar de todas essas coisas que poderiam ser consideradas um motivo para ele ficar ranzinza, triste, ele é um gozador, brincalhão e alegre, que era uma característica do brasileiro antes do surgimento dessa trolha que é esse extremismo de direita raivoso. Mas o brasileiro sempre foi um ser mais brincalhão, divertido, gozador e inteligente.
O Saci também sintetiza um pouco uma característica da resistência popular brasileira, de estar no drible, de romper com as opressões pela inteligência e pela rebeldia?
Sim. Ele é um ser libertário. A história dele que a gente aceita mais é que, quando ele foi transformado em negro, ele foi escravizado por um fazendeiro. E ele era mantido à noite com a perna presa por grilhões de ferro no centro da senzala. Uma noite, ele cortou a perna para fugir, essa perna que estava presa. Ele virou perneta por isso, porque ele preferiu ser um perneta livre do que um escravo de duas pernas.
Tem esse simbolismo. Quando ele foi transformado em negro, os caras acharam que ia ter muito preconceito, que os negros iam lamentar isso, mas aconteceu o contrário. Quando tinha uma revolta na senzala e ela era contida, os senhores iam tentar descobrir quem liderou essa revolta e essa pessoa seria marcada a ferro ou morta. Daí, quando pressionavam e torturavam os escravizados para contarem quem começou a rebelião, eles diziam: “Foi o Saci”.
Como prender o Saci?
Quando uma cozinheira errava a mão no sal, por exemplo, ela podia ser muito maltratada pelos senhores. Diziam: “Vocês jogaram sal demais”. E ela falava: “Foi o Saci”. Então, começaram essas lendas todas.
Em todos os momentos de rebelião, de rebeldia a favor da liberdade, tem o Saci na orelha das pessoas ali também, cutucando. Tinha, então, esse fato de ele fazer esse tipo de coisa e ser um cara que provoca determinadas encrencas. Cornélio Pires, que era um grande estudioso da cultura caipira, dizia que a vida no sertão é muito modorrenta, devagar. Então, o Saci serve para agitar isso.
A gente fez um filme chamado Somos todos Sacys e uma mulher de Botucatu [cidade no interior de São Paulo] disse o seguinte: “O Saci apronta mesmo, mas é uma coisa que não é fatal. Você nunca ouviu falar que alguém morreu de Saci”.
Ao longo da história, o Saci também foi criminalizado, de certa forma, pela elite e pela moral cristã. Como isso se deu?
Tem uma coisa muito ligada a essa questão de preconceito, em geral. Até hoje, você vê que o Saci não é aceito por certas tendências religiosas. Porque eles acham que tudo o que não é Jesus Cristo é demônio, é inferno.
Tem também o imperialismo europeu de ter domínio sobre a população. As culturas indígenas ou africanas representam sempre uma rebeldia, um modo de não aceitar esse domínio. Se você olhar todos os mitos, com o Curupira também é assim, são tratados como demoniozinhos. A Iara, é tratada como uma demoniazinha, que puxa as pessoas para dentro das águas.
Todo mundo que contesta esse poder é tratado assim, igual às bruxas na Idade Média. Por que puseram as bruxas na fogueira? Porque as mulheres eram bruxas mesmo, mas a bruxaria não tinha nada de maldade. As bruxas eram mulheres sábias que entendiam de ervas medicinais e tinham uma cultura de não aceitar o poderio dos reis e da igreja.
Elas eram queimadas para representar a ideia de “ou vocês aceitam o nosso poder, ou vão ser queimados na igreja também”, dando um exemplo. Com o Saci acontece a mesma coisa, porque ele é um ser libertário, que não aceita a dominação. Os poderosos nunca gostaram desse tipo de gente, de seres mitológicos. Então, ele sempre foi perseguido e vai continuar sendo.
Ele é muito bem aceito hoje em dia por um monte de gente, em especial por crianças, que se identificam muito com ele. Eu lembro de uma época em que tinha um restaurante francês aqui perto de casa, mas não era restaurante chique, era um boteco, mas era de francês. Nasceu um moleque e quando ele estava com cinco anos de idade, eu dei um livrinho de Saci para ele. E ele ficou apaixonado pela figura rebelde do Saci.
A mãe dele um dia me falou: “Olha, sabe o que está acontecendo com o Gustavo? Quando ele apronta alguma coisa, eu vou lá dar bronca nele e ele fala ‘mãe, não fui eu não, foi o Saci’”. E saía pulando com uma perna só, gozando. Então, ele é esse exemplo de rebeldia, mas uma rebeldia no sentido de não aceitar a dominação injusta, de não ser de controle sobre os comportamentos.
Como as narrativas envolvendo o Saci, sobretudo com essa dimensão ecológica, podem também dialogar com os desafios ambientais que vivemos hoje?
Eu gostei muito, por exemplo, da escolha do Curupira como o símbolo do encontro de Belém da COP30. Esse negócio de sacis e essas outras figuras tem muito a ver com a cultura indígena. Agora, tem um pouco de gente que está começando a entender que a proteção da floresta por povos indígenas não é por preguiça.
Antigamente, tinha um monte de gente que defendia que “o fazendeiro quer produzir soja, mas tem um monte de índio atrapalhando ali”. Mas os indígenas estão defendendo o meio ambiente.
Na cultura tupi-guarani, a mitologia é muito interessante, tendo três deuses principais. Um é o Guaracy, que é o Sol, o criador e protetor de todos os seres e animais. Outro é Jaci, que é a Lua, criadora e protetora dos vegetais. E tem o Rudá, que é o Deus do amor, encarregado de fazer os seres humanos se encontrarem e se reproduzirem, como o cupido da cultura romana, mas o Rudá ficou meio esquecido.
A palavra Jaci significa mãe dos frutos. O Curupira é um deus auxiliar dela. E o Saci, por sinal, é um deusinho menor, auxiliar do Curupira. O Curupira é protetor das florestas e o Boitatá é protetor dos campos. A pessoa acha que o campo é um matinho rasteiro e não tem nada, mas tem muita vida nos campos, não só vegetal como animal.
Iara é criadora e protetora dos seres que moram nos rios. Ela não é protetora da água, ela é protetora dos animais que moram na água. Só que, para proteger esses animais, tem que ter muita água boa.
Tem também o Caipora, que é o protetor dos animais da floresta. Existe aquela lenda de que o Caipora persegue quem mata principalmente fêmeas, prenhas ou filhotes, a fêmea amamentando. Então, ele aparece quando uma pessoa viola às vezes a natureza e dá um azar terrível.
Na cultura indígena, tem esses deuses. A Iara, protetora dos animais da água, sabe que, para ter um rio de água limpa, precisa ter uma floresta que o proteja. E precisa ter também os outros animais que cuidam da água.
O Curupira sabe que, para a floresta existir, precisa de muita água dos rios. Então, ele é sócio da Iara nesse negócio. E precisa dos animais, porque os animais engolem sementes e levam de um lugar para outro para nascer outras árvores. Existe esse conjunto de entendimentos na mitologia indígena de que tudo se junta e é necessário.
Nos meus livrinhos infantis, por exemplo, eu sempre procuro mostrar isso, para facilitar inclusive a vida do professor. Estudando essa mitologia indígena, uma criança vai entender que as coisas todas têm relação. Se você está cortando uma árvore, você está destruindo não só a árvore, mas tem uma vida que depende dela. Tem toda essa coisa de ligação. Um professor que queira fazer a criança entender mais a questão ambiental, com o estudo da mitologia indígena, facilita muito.
No dia do Saci, também é o dia do Halloween fora do Brasil. Existe um embate simbólico entre o Saci e o Halloween? É uma disputa cultural ou há espaço para convivência entre eles?
A Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci), que eu ajudei a criar em 2003, surgiu justamente porque a gente estava vendo a invasão cultural que representa o Halloween. É o imperialismo cultural. O Halloween original da Irlanda, da Inglaterra, não é isso que se tem nos Estados Unidos.
Os imigrantes foram para os Estados Unidos, levaram essa cultura do Halloween, que é a véspera do Dia de Todos os Santos, no dia 31 de outubro. Eles comemoram lá como um dia que abre um portal entre os mortos e os vivos, na Irlanda, entre os povos celtas. E, então, muitos seres mortos vêm buscar outras pessoas, os vivos. Então, eles usavam máscaras e fogueiras para espantar e para não serem reconhecidos.
Só que, nos Estados Unidos, transformaram em uma festa comercial. Eles passaram a impor esse tipo de coisa ao mundo. Começou com escolinha de inglês. Eu acho normal uma escolinha de inglês estudar a cultura do outro país. Mas depois começaram a ir até escolas na zona rural de São Luís do Paraitinga, por exemplo, que estava tendo comemoração do Halloween sem ninguém saber por quê. Enquanto isso, o padre condenando o Saci e o Curupira.
Os professores não entenderam nada. Então, a gente criou o Sosaci por causa disso, como combate contra o imperialismo cultural. A gente aceita que exista lá, é a festa deles, que comemorem eles.
Agora, isso não é só aqui. Na própria França, por exemplo, o pessoal começou a rejeitar o Halloween. Essa forma do Halloween, comercial. Os Estados Unidos transformam tudo em comércio, até o Dia das Mães. Uma mulher que criou o Dia das Mães se arrependeu, porque ela quis criar o Dia das Mães porque a mãe dela tinha morrido. Queria fazer uma homenagem com reflexões, orações, mas virou dia de dar presente.
O Halloween nos Estados Unidos é a segunda festa que mobiliza mais dinheiro, só perde para o Natal, ganha até do Dia das Mães. É um comércio e a gente é contra esse comércio. Tanto que nas festas do Saci, por exemplo, em São Luís do Paraitinga, nada é cobrado, a não ser que você vá comprar algo. Mas as atividades são todas em praça pública, com música, teatrinho, cinema, debates.
A única coisa que é feita em um ambiente mais fechado é um seminário de cultura caipira, mas também é aberto para o público. Ninguém paga nada para entrar. Se você quer fazer um gorrinho, você faz seu gorrinho, você não tem que comprar nada para comemorar.
Sobre os EUA, precisamos pensar, por que é só de lá para cá? A coisa tem que ter duas mãos. Eles não aceitam que a gente leve os nossos mitos para lá, a nossa festa para lá. E o pessoal aceita isso aqui. Quando você começa a aceitar que a festa do outro é melhor que a sua, que a cultura do outro é melhor que a sua, você começa a aceitar que o outro é melhor que você.
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