Uma didática da invenção IPara apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.IIDesinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.IIIRepetir repetir — até ficar diferente. Repetir é um dom do estilo.IVNo Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito:Poesia é quando a tarde está competente para dálias. É quando Ao lado de um pardal o dia dorme antes. Quando o homem faz sua primeira lagartixa. É quando um trevo assume a noite E um sapo engole as auroras.VFormigas carregadeiras entram em casa de bunda.VIAs coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças.VIINo descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos — O verbo tem que pegar delírio.VIIIUm girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.IXPara entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz . Hoje eu desenho o cheiro das árvores.XNão tem altura o silêncio das pedras.
__________________________Manoel de Barros, poeta brasileiro (1916-2014). Ronildo Pimentel é jornalista em Foz do Iguaçu, Pr. (Fotografia publicada na revista Escrita 53.
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