Tinha menos de treze anos. E odiava madrugar. O caminhão passava no ponto marcado às 5h00. Ele ajudava a irmã, mais nova, a subir na carroceria. A menina, loirinha, assustada. Criança de tudo ainda. Iam colher algodão. Em casa, o pai doente, a mãe a se virar na mistura, no milagre da multiplicação do pouco. E levavam, na marmita, uma espécie de sopa de fubá com couve. Nada mais. Água? Arrumavam na roça mesmo, que isso de água tratada não existia para todos. Roça de algodão de arrendatário, roça maltratada, de recursos escassos e pragas muitas. Entre as pragas, lagartas, muitas lagartas. Não sabia, naquele tempo, que existiam variações das populações de lagartas. As principais: a rosada (Pectnophora gossypiella), a lagarta-da-maçã (Heliothis virescens), que ataca o algodão ainda na fase de fruto (maçã, não a fruta, mas estágio inicial da pluma) e a lagarta do algodão (Helicoverpa gelatopoeon), a mais devastadora. Mas isso de diferentes lagartas sabe hoje. Naquele tempo eram só lagartas, bichinhos nojentos, a cair pela camisa, a grudar na pele. E, quando esmagada, um verde visguento e fétido. E quando uma delas, grande, viçosa, caiu na sopa de fubá com couve, ele decidiu. Aquilo de boia-fria não era vida. Necessário estudar, única maneira de se livrar das lagartas e da miséria. Naquele dia não comeu. Estômago e fome ´´tapeadas“ por uma cana colhida ali, à espreita, e descascada no dente. A decisão, de homem grande no corpo de menino, foi cumprida. Mas naquela safra, também cumpriu o contrato. Terminou a colheita. A irmã não, que era sacrifício demais para corpo tão pequeno. Na hora do acerto, a decepção. O arrendatário, velho João, que não sabia o nome completo, semeou desculpas. Safra ruim, ia ficar a dever ao dono da terra, prejuízo imenso. Olhos no chão, vergonha fingida ou real, velho João arrumou solução. Pagaria parte que podia. A outra parte faria vale. Discussão demorada, tinhosa, que o menino não abria mão de receber o integral, sem descontos, sem vale. O velho cedia aqui, argumentava ali e a querela não se decidia. Por fim, sem solução, solucionado fica. E o menino, a praguejar, raivoso, desconsolado, voltou par casa com um vale de 2,60 cruzeiros (que era tempo do cruzeiro da Ditadura). Voltou a caminhar, pouco mais de sete quilômetros que, na raiva, dispensou o caminhão que levava os miseráveis de volta à cidade. E a planejar vinganças de menino. Marcar o velho homem a homem, como no futebol, sem dar espaço para fugas. Receber o caraminguá que restou virou questão de honra. E isso durou mais de um ano. O menino já tinha emprego formal. Menor aprendiz no comércio. Serviço leve, ganho de 75% do salário mínimo, quase suave comparado à colheita do algodão. Mas não esquecia. No bolso, levava sempre o vale. Em um papel branco, escrita torta pela pouca educação, consigo. Na assinatura, apenas um João quase desenhado, de analfabeto. O papel, ordinário, se esfarelava. Mas o menino não desistia. O velho, chateado, envergonhado, trocava de calçada quando via o menino. Ele, marcação cerrada, o velho vergonha estampada, não fingida. E a coisa durou até o pai ver, um dia, a cena. O menino atrás do velho João, na perseguição. O pai chamou o menino de lado. Humanista, questionou a fixação do garoto. Explicou, conversou e convenceu. O velho não pagava porque não tinha como. Miséria total. Nem trabalhar pode, que adoentado, insistiu na explicação. O menino obedeceu. Mas guardou o vale. Esperança de um dia receber, que era questão de honra. O tempo passou. O vale perdeu-se no tempo. O menino ficou adulto. Velho João, o pai e a irmã também se foram, mortos todos. Ficou a lembrança. Adulto, entendia o drama do velho, arrendatário falido. E a raiva, a bronca de se sentir explorado do menino, virou, no adulto, um grande arrependimento.
___________________________José Maschio é jornalista e escritor em Londrina, Pr.
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