Por do sol no Lago de Itaipu, em Foz do Iguaçu (Foto: Marcos Labanca)
Em algum tempo e de alguma maneira, tudo isto terá findado, mas guardaremos por muito tempo, talvez para sempre, as memórias destes dias. Desde que cheguei a este planeta, minha vida esteve sempre intimamente ligada às mais diversas epidemias.
Nos anos 1970, ainda filhote de gente, atravessei a tenebrosa epidemia de meningite meningocócica, época de escola, de enxergar sem entender muito o terror de todas as pessoas, o medo nos olhos dos meus pais, os coleguinhas que adoeciam e não voltavam, as escolas que serravam suas portas.
Muito mais tarde, já na faculdade de Medicina de Londrina, foi a vez da epidemia de sarampo, trabalhando no HU como interna, tempo de formação.
Na residência médica, nos anos 1990, o princípio da temível epidemia de AIDS – mortal, cruel e reveladora das escolhas sexuais até então vividas em segredo. Uma epidemia que é a total responsável pela opção da minha especialidade na infectologia. Naqueles tempos sombrios aprendi, da forma mais visceral, que todo ser humano é feito de luz e sombra e que sempre existem possibilidades de beleza ainda que no meio da dor e da morte.
Com meus pacientes de AIDS, aprendi o valor do tempo, dos afetos de toda ordem e do poder reparador do perdão e do amor. Foram eles que me deram, sem pedir nada em troca, a noção do que de fato é importante na vida.
Alvorecer no lago de Itaipu (Foto: Marcos Labanca)
Chegando a Foz, já formada, vi com meus olhos de jovem médica mais sarampo, o temor do cólera que nunca chegou entre nós, a raiva canina que erradamente tinham me ensinado estar erradicada no Paraná, malária e a instalação sem trégua da dengue.
Já no novo século participei do combate à gripe H1N1 em 2009, talvez o momento mais difícil da minha carreira, ter de estudar um vírus novo, causador de uma doença antiga, que adquirira capacidades insuspeitas e em vez de matar as vítimas usuais (idosos e imunossuprimidos) inventava de aleatoriamente matar jovens, crianças, gestantes e adultos saudáveis. Tinha tratamento conhecido, mas que deveria ser usado só em casos específicos.
Após ver que tal conduta seria inadequada para evitar agravamentos e mortes, pois o vírus atacava pessoas insuspeitas, a cidade de Foz do Iguaçu, por decisão de toda a equipe técnica envolvida, foi a primeira cidade do país a romper o protocolo do Ministério da Saúde e tratar com o Tamiflu todos os pacientes com síndrome gripal e, a partir desse ato de rebeldia, conseguir acabar com todos os casos graves e óbitos. Nossa rebeldia não foi recebida graciosamente, o Ministério da Saúde só passou a recomendar esse protocolo do uso irrestrito no ano de 2016.
Tudo isso dito e feito, enfrento agora mais um desafio, talvez o maior deles: participar do combate ao novo coronavírus, vindo de Wuhan, China, chamado de SARS-CoV-2 e causador da doença covid-2019.
Um vírus rápido em seu contágio e dispersão, enganador na sua sutileza, pois, apesar de atingir uma faixa etária que é usualmente vítima preferencial dos vírus respiratórios, esse agente tem a capacidade de se introduzir silenciosa e sorrateiramente entre as pessoas para então atacar os vulneráveis a um só tempo, colapsando o sistema de saúde e fazendo a colheita dos seus mortos.
Esse vírus, em sua sanha por se reproduzir e se propagar, bota a nu as mazelas humanas; nossa prepotência, nossa arrogância, nossa mesquinhez, nossa desunião, nossa hipocrisia, nossa ignorância e o quão fina é a nossa capa de civilidade ante o medo e a morte.
Por outro lado, ele igualmente mostra nossa generosidade, o altruísmo, a coragem, a adaptabilidade, o engenho humano, nossa capacidade de união, superação e espírito de grupo. A beleza da ciência, do amor e da fé.
O embate de agora não é contra um vírus, mas a luta sem quartel entre nossos lados de luz e sombra. A vitória ou derrota nessa batalha ocorrerá conforme a porção de nossa condição humana que decidirmos alimentar. Decidam com sabedoria.
Foz do Iguaçu, 20 de março de 2020.
(Retirado do livro O mundo maravilhoso de FT. Capítulo: Humano Demasiadamente Humano. 1ª edição.)
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