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A todes que chegarem esse sinal de fumaça, sou Taisa Cabocla, antropóloga, agricultora, pesquisadora e atualmente doutoranda em antropologia social na Ppgas Ufrn. Em meio a pandemia do Covid-19, busco refúgio em meu habitat cultural – a comunidade rural de Góes Artigas, localizada no município de Inácio Martins na região centro sul do Paraná, conformada por remanescentes da floresta de araucárias.
A escassez da água sentida todos os dias quando vejo meu pai buscar água no carrinho de mão para a família, os animais e as plantas, água essa que não chega mais na torneira devido a seca, tem aprofundado um desconforto enorme com a forma destruidora que pessoas, empresas e governos tem tratado a água e a natureza como um todo, principalmente no lugar onde vivo.
Todos os dias respiro a poeira dos caminhões carregados de pinus, madeira plantada em grande escala na região, que substitui de forma acelerada o que ainda temos de mata nativa. O município de Inácio Martins detém uma longa história política e econômica de exploração da natureza e produção de desigualdades através do corte de madeiras nativas, principalmente o pinheiro – árvore símbolo do Paraná; plantações de monocultivos florestais – pinus e eucalipto; e produção de carvão. Um projeto de destruição que empobrece cada vez mais os caboclos que vivem na cidade mais alta do Paraná.
Essa forma devastadora de relação com os ambientes que vivemos tem consequências imensuráveis para toda população, mas de forma primeira para nós, agricultoras familiares. Hoje estou com o coração arrasado por ver no último mês tantos lugares que fazem parte das minhas memórias de águas e constituem minha trajetória com o chão rachado, secos. Como forma de denúncia, vou fazer uma publicação diária pelos próximos dias sobre as memórias que eu e minha família temos sobre esses lugares.
A primeira publicação é dessa tarde de domingo (26/04/20) na casa da minha avó Cecília Maria, o material artesanal e amador descreve as Memórias de Águas da minha tia Rosilda Moraes sobre o rio que contorna sua casa e a história da minha família materna.
Em sua narrativa descreve a abundância d’ água do rio que movia monjolos de farinha, lugar que hoje resta apenas as memórias de infância. Veja o vídeo, aqui
https://www.facebook.com/100003203416074/videos/2786253948158025/
Memória de Águas #2
A segunda publicação é do final da tarde de ontem (28/04/20), hora que meu pai faz a última viagem do dia para buscar água para os animais, em um poço de uma propriedade vizinha a cerca de 500 metros da nossa casa.
Meu pai, Lademiro Lewitzki, tem 73 anos e conta que nunca vivenciou uma seca desse tamanho. Há dois meses a água do poço da nossa chácara é insuficiente para as coisas essenciais, como matar a sede das pessoas e animais. Ademais da proteção da fonte e os cuidados que temos com a nascente, estamos em meio a uma área quem vem sofrendo ao longo das décadas o avanço do desmatamento e a substituição drástica de mata nativa por reflorestamentos de pinus e eucalipto. É essa a situação das famílias de pequenas agricultoras que ficam ilhadas com a concentração de terra dos grandes proprietários que pouco se importam com a preservação das nascentes, lagoas, rios, banhados, morros… .
. Essa forma de relação com a natureza, pautada no desrespeito a partir da destruição – desmatamento, queimadas e monocultivos florestais – faz com que nosso modo de vida seja impactado em todos os sentidos. Hoje nossos plantios de alimentos agroecológicos estão mortos, porque não temos água para irrigar, os animais estão em número reduzido e as atividades cotidianas estão limitadas, já que grande parte das coisas fazemos com as mãos e precisamos de água para isso.
Mesmo antes da pandemia, nossos encontros familiares estavam restritos, porque desde novembro de 2019 a situação da água exige cuidado e total economia. Nossa situação reflete um cenário maior, o Estado do Paraná, o estado do agronegócio enfrenta a maior estiagem de todos os tempos.
Pergunto: Qual a relação disso – agronegócio e estiagem? O que esse momento nos fala? O Covid-19 está aí para refletirmos sobre a maneira que vivemos, o que estamos fazendo com o nosso planeta? Quem está pagando a conta da nossa forma de consumo a partir da exploração da natureza (considerando, a natureza quanto pessoas, animais, matas, terras, águas..)?
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