Uma história pode facilmente ser apagada ou cair no esquecimento, como um número, um boletim de ocorrência, uma estatística qualquer. A morte de meu pai reacendeu em mim a vontade de escrever sobre a sua trajetória e uma parte da nossa também, os filhos dele. Decidi resgatar num livro a experiência de morar num parque de diversões.
Levávamos uma vida nômade, sem mordomia, com muitos sacrifícios e restrições, mas tínhamos certo orgulho dela, porque vivíamos fora dos padrões convencionais e essa forma de viver tinha, paradoxalmente, um efeito mágico também.
Fora isso, tínhamos um orgulho danado do nosso pai como artista. El Gran Capy foi um dos melhores motociclistas acrobatas de sua época, na América do Sul, um dos melhores globistas e o mais criativo piloto da Muralha da Morte. O mais arrojado. E por que não o mais sedutor e intrigante condutor desse tipo de arte?
Capy ganhou esse apelido na infância, por seus dentes grandes e um pouco saltados, que lembravam um roedor (em espanhol, capy é um diminutivo de capybara, ou capivara, em português, o maior roedor do mundo).
A saga aventureira, de ciganos, de gente de parque e de circo, começou e morreu com meu pai. Foi a vontade dele de se aventurar, de conhecer cidades, estados e até outros países que o levou, ainda adolescente, para os espetáculos itinerantes.
Argentino com todas as impressões digitais que o adjetivo pátrio pode carregar, na alma e no comportamento, Capy morava em Morón, na Grande Buenos Aires, quando foi atraído pelo circo, aos dezoito anos de idade. Era um rapaz inquieto, encrenqueiro, exibicionista e extremamente galanteador.
Começaria ali uma carreira de sucesso, de um acrobata sobre duas rodas, de um artista genioso e generoso, que repassou técnicas e manhas a muitos discípulos, alguns dos quais ainda estão na ativa. Muitos assumidamente seus fãs.
Antes do início do espetáculo, suspense. O locutor anuncia: “Vai começar o maior show de motociclismo de todos os tempos. Orgulhosamente, apresentamos El Gran Capy e Príncipe Nino. Uma salva de palmas, por favor”.
em meio aos aplausos, um ronco infernal faz tremer toda a estrutura da muralha da morte. Parece que os tímpanos vão estourar.
O cilindro de madeira balança sem parar. Lá no alto, a mais de oito metros de altura do paredão que será percorrido pelas motos, o coração dos espectadores bate mais forte. De cima para baixo, parece um precipício. E vêm lá de baixo as aceleradas, aguçando os sentidos e a curiosidade. Parece que tudo vai desabar.
Público e motociclista experimentam uma adrenalina parecida. A plateia está aflita. Os artistas, acelerando as máquinas, fazem o sinal da cruz, um pedido de proteção divina antes de desafiar a lei da gravidade.
Sozinho, Nino dava início ao espetáculo, percorrendo em alta velocidade até pouco mais da metade da altura do cilindro, com algumas acrobacias simples, como soltar as mãos e saudar o público, com gritos e acenos, dando uma amostra do que viria a seguir.
Segunda parte do show. Era a vez da apresentação em dupla. Com sincronismo perfeito, Capy e Nino percorriam o cilindro, primeiro em planos diferentes e depois juntos. Num certo momento, chegavam até a dar-se as mãos e faziam a volta completa, para delírio do público.
Cada apresentação da Capy e Nino demorava, em média, de quinze a vinte minutos. Na primeira parte, apenas Nino subia. Depois de alguns giros rápidos, fazia as primeiras acrobacias e descia. Um rápido intervalo, um pedido para o público contribuir com o seguro de vida e o reinício. Nino, novamente, e Capy, em seguida.
Nino fazia uma apresentação mais comedida, embora a plateia também apreciasse. Mas o público vinha abaixo quando era Capy o rei do espetáculo. Ele conduzia a moto de um jeito ímpar, chegando a comandar a máquina apenas com os pés, as mãos totalmente soltas. Fazia giros de 180 graus em cima da motocicleta – para cima e para baixo -, abria os braços, ficava de pé, de joelhos. Eram várias acrobacias seguidas.
Outra marcação bastante arriscada e difícil era quando Capy, pilotando atrás de Nino, ultrapassava-o em alta velocidade, tirando fininho da moto do parceiro. Se a máquina falhasse, se Capy acelerasse mais ou menos do que o tempo exato, era acidente na certa.
A acrobacia “cruz fatal”, como o nome sugere, era a mais perigosa: enquanto Nino subia com a moto pela muralha, Capy descia, ambos em alta velocidade, cruzando um com o outro a milímetros de distância.
Mas o público ainda tinha muitas surpresas pela frente. Nino descia e deixava Capy sozinho com suas loucuras. A oitenta ou cem quilômetros por hora, ele chegava tão perto dos espectadores, que muitas pessoas recuavam, achando que a moto iria cair sobre elas.
O ronco dos motores, o giro rápido das motos, o balançar da estrutura. Tudo isso aguçava os reflexos do público. As pupilas se dilatavam, o coração disparava e parecia que faltava a respiração. A certa altura, os cabelos ficavam, literalmente, de pé.
Estava certo o locutor que, no início da apresentação, alertava que os espetáculos não era indicado para pessoas que tivessem problemas cardíacos. Pessoas de idade, às vezes, passavam mal de ver os aloprados da muralha em ação.
Os textos acima foram extraídos do livro “Gran Capy’, editado em 2017, pela Geração Editorial.
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