Estavam ocupadas todas as mesas do primeiro andar do restaurante. Ela poderia procurar um lugar para sentar-se sozinha no segundo piso, e tudo estaria resolvido. Olhou de um lado a outro, talvez na esperança de ver um cliente terminando o almoço. Seria a sorte do dia para evitar subir três lances de escadas com bandeja nas mãos e uma bolsinha presa debaixo do braço esquerdo.
Sentado perto da porta, Heitor observava cada movimento. Não lhe restou alternativa. Tímido desde sempre, fez algo jamais ousado nem nos melhores tempos de paquerador no Bartolomeu Mitre: largou os talheres, levantou-se e puxou a cadeira com a mão esquerda sem a coragem necessária para aquele movimento de giro no ar com a outra mão, como fazem os cavalheiros. Não foi preciso. O gesto incompleto foi correspondido de prontidão.
A mulher agradeceu, sentou-se e deixou a bolsa muito à vontade entre as bandejas. Como se fossem um casal. O prato do homem estava meio cheio, ainda mais quando comparado com a comida de passarinho da recém-chegada. Sem saber por onde começar, o sujeito apenas desejou bom apetite. Pensou em continuar a refeição tal como estava antes, calado, ou mesmo fingir dar uma olhada no celular.
Estático diante dela, a única coisa a passar pela sua cabeça foi o desafio mental elaborado minutos atrás. “Duvido acontecer algo de bom nesta Quarta-Feira de Cinzas”, brincou consigo enquanto caminhava rumo ao restaurante. Era só mais uma edição do jogo criado entre o cérebro e o coração cultivado ao longo de quatro décadas para dar sentido à razão e à mais pura coincidência.
Falar de religião não teria erro. “Movimentado hoje para um feriado, não?”, arriscou. Sem hesitar, ela sorriu cobrindo a boca com a mão e perguntou se ele sabia o significado da data. Desastre total. Ele enrolou algo sobre o corpo de Cristo. A inquisidora deixou escapar uma risada expondo algumas simpáticas frestas entre os dentes. Logo entenderam que seria melhor falar do sexo dos anjos à aula de catequese básica.
Entre uma garfada e outra, os dois até tentaram engatar um assunto em meio ao barulho do noticiário e dos veículos na Avenida Brasil. Acontece que a sua voz era demasiadamente baixa, talvez pelo receio de expor os remanescentes daquele sorriso negro, desnudando as suas raízes de respeito, de liberdade e de felicidade, em meio a tantas outras histórias como canta Dona Ivone Lara.
Sem êxito na prosa, Heitor diminuiu o ritmo do almoçar. Àquela altura estava decidido a dar uma carona para a desconhecida no já começo de tarde ensolarada em Foz do Iguaçu; 30°C no mínimo, para variar. A dama rejeitou a oferta duas vezes. “Moro perto”, disse. “Pego o ônibus ali na antiga catedral e logo estou em casa”, tentou despistar. Até que, diante da insistência, aceitou o convite.
Durante o trajeto, com os vidros fechados e sem o barulho do mundo lá fora, a conversa começou a fluir. Finalmente soube o seu nome: Célia. Mas logo o veículo subiu a Avenida Brasil, passou pela Jorge Schimmelpfeng e parou depois da curva na subida da Paraná. Foram poucos minutos entre o restaurante e a moradia. Nem deu tempo para saber muito um do outro. Chegou a segunda despedida. Apesar da diferença de idade, imperava no ar aquela sensação de perder de vista o amor de toda uma vida.
Após permitir-se dar o primeiro beijo no rosto, perguntou:
— Espera um pouco. A senhora mora aqui?
— Sim, naquela casa de fundo de quintal, disse, apontando para uma residência verde do outro lado da avenida.
— Um velho amigo meu morava em uma dessas casas, não lembro qual.
— Moro aqui há anos. Como é o nome dele?, indagou.
— Zezinho.
— É meu filho!
— Mundo pequeno. Eu sou filho da Helena e do André. Lembra-se de mim?
Dali para frente o papo não parou mais. Veio o pedido para adentrarem ao recinto. Com receio de perder a hora, ele recusou o convite para um bolo da tarde. Apesar da recusa, o relógio parecia não existir. Os tantos compromissos profissionais da lista feita pela manhã com as tarefas do dia teriam de esperar algumas boas voltas dos ponteiros.
Os dois falaram sobre tudo um pouco, lembrando-se da época de vizinhos no Boicy e dos dias de trabalho do adolescente Heitor e do jovem Zezinho no único jornal da cidade, de uns 40 anos atrás. Após falar do filho, da nora e das filhas, a senhora desandou a perguntar. Esbanjou uma memória admirável no alto dos seus quase 80 anos.
Dele pediu da mãe, do pai, das irmãs, das tias e tios, primos e primas. Um a um. Uma a uma. Ia dizendo os nomes e perguntava da vida dos antigos moradores do Boicy. Da avó, por quem sempre guardou carinho, perguntou um pouco mais. Lembrou que sempre a via subindo e descendo a Paraná. Soube que a matriarca estava bem, com quase 100 anos. Para Flora, o tempo sempre passou sem pressa.
Antes da terceira despedida, Célia fez questão de lembrar quando Heitor era criança, loirinho, e depois com espinhas no rosto. Poucas, diga-se de passagem. Mais um beijo no rosto dela e um beijo no rosto dele. Uma promessa de visita decente, como tantas outras feitas antes da pandemia, e a jura de um encontro com mais tempo para uma boa conversa e um café fresco. Um até logo perdido no ar.
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