“Olhar Quilombola na Comunidade Indígena”: em 2018 foi realizada a ação “Trocando Olhares”, em que integrantes das comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas criaram seis curtas que tratam das questões ligadas ao território. (Foto: Cinecipó/Divulgação)
Foi durante as gravações de seu segundo documentário, “Rota do Sal Kalunga”, e tendo como cenário o quilombo dos Kalungas, que o realizador Cardes Monção Amâncio, coordenador do Cinecipó, se deu conta do quanto seria muito mais rico se um público bem mais amplo tivesse acesso a filmes produzidos pelos próprios quilombolas – ou, ao menos, pelos quilombolas em parceria com os “forasteiros”. Um primeiro capítulo desse sonho se concretiza agora com a 1ª Mostra de Cinema dos Quilombos, que se inicia neste sábado, prosseguindo até 5 de setembro. Totalmente online e gratuita, a iniciativa terá a exibição de oito filmes que trazem importantes temáticas étnico-raciais.
O conteúdo da mostra é, na verdade, o resultado inicial da pesquisa/levantamento iniciado em junho deste ano, em parceria com as pesquisadoras Alessandra Brito e Maya Quilolo sobre o cinema feito nos quilombos no Brasil. “Um dos principais objetivos da mostra é dar visibilidade a esse cinema que é feito nos quilombos, a essas pautas que circulam em torno desses filmes e, principalmente, demarcar a importância das atividades informativas, do acesso ao cinema e da possibilidade de as comunidades quilombolas se expressarem a partir dessa linguagem, acho que uma grande discussão dessa iniciativa é o direito mesmo: ao cinema, o direito à comunicação, o direito à expressão”, pondera Maya.
A escolha do mês de agosto para a realização da mostra de Cinema visa, de acordo com a produção, homenagear dois marcos fundamentais na discussão étnico-racial no Brasil. A criação da Fundação Palmares, em 22 de agosto de 1988, e o aniversário da Conferência de Durban, ocorrida em 2011 na África do Sul e que reuniu mais 173 países e 16 mil delegados. A Conferência de Durban foi de extrema importância para o reconhecimento internacional do que hoje conhecemos como Estatuto da Igualdade Racial e Políticas Afirmativas. “A Fundação Palmares está sob ataque, como todas as políticas de promoção da igualdade social no Brasil, seja para indígenas, outras minorias – que, na verdade, somadas formam a maioria. Então, a mostra é para falar que estamos juntos e nenhum passo atrás! Seguimos na mobilização, no sentido de um progresso dessas causas, de uma melhoria da vida comum, do bem comum”, enfatiza Cardes.
Maya adiciona: “A gente está com o chamado aberto para filmes de diversos realizadores porque vamos realizar outras mostras posteriores, fazendo recortes temáticos, dos olhares, enfim.. Neste primeiro momento, essa mostra vem demarcar a essência desse cinema e a importância dele, bem como também (a importância) de se olhar para essas comunidades”.
Até agora, a mostra recebeu mais de 40 inscrições de filmes realizados nesses que também podem ser chamados de espaços de resistência. E todos dirigidos por realizadores quilombolas, negros e brancos, aliados às lutas antirracistas no país. A boa notícia é que as inscrições continuam abertas e podem ser feitas no site https://cinecipo.com.br/cinema-dos-quilombos/. Ou seja, outros títulos podem ser agregados, o que possibilitará compor, em um fluxo contínuo, um generoso e plural panorama deste recorte tão potente.
Além dos filmes, a 1ª Mostra de Cinema dos Quilombos contará com lives com cineastas quilombolas e realizadores dos filmes no canal do Cinecipó. E além do já citado “Sonhos de um Negro”, compõem a programação: “A Sússia” (2018) de Lucrécia Dias; “As Contas do Rosário” (2020) de Maycol Mundoca; ‘Blackout” (2016), direção coletiva de Adalmir José da SIlva, Felipe Peres Calheiros, Francisco Mendes, Jocicleide Valdeci de Oliveira, Jocilene Valdeci de Oliveira, Martinho Mendes, Paulo Sano, Sérgio Santos, dos Quilombos de Conceição Crioulas, Salgueiro e demais territórios do sertão brasileiro; “Olhar Caiçara na Comunidade Quilombola” e “Olhar Quilombola na Comunidade Indígena” (2018), direção coletiva de Rafaela Araujo, Marina Albino, Alexandro Kuary, Patricia, Bianca Lucio, Eduardo xexeu, Antonio Garcia, Fabio Martins e Rafael Guedes.
Não bastasse, haverá, neste sábado, às 17h, o online do filme “Nove Águas“, de Gabriel Martins e Quilombo dos Marques, com a participação dos moradores do espaço Delei, Dione, Maria Eunice, Wiliam, Delmiro, José de Nego e Aristóteles.
Assista Nove Águas:
https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=Lt77j0us_fg&feature=youtu.be
Cardes lembra que tanto as filmagens de “Rota de Sal Kalunga” quanto as de “Candombe do Açude: Arte, Cultura e Fé”, sua primeira investida, gravada no quilombo do Açude; foram processos bastante intensos para ele, e que fortaleceram seu vínculo e sua admiração pelos quilombos. “Na minha pesquisa de doutorado, concluída em 2019, fiz um pequeno levantamento de filmes de quilombo. E fiquei com planos de ampliar esse trabalho, algo que consegui implementar agora, em 2020, com a fundamental participação da Alessandra e da Maya. De pronto, veio a ideia de abrir o chamado em fluxo contínuo para que quilombolas e não quilombolas aliados na luta antirracista enviem seus filmes sobre quilombos. Além de um procedermos a um levantamento ativo de filmes já produzidos. Esse levantamento e as atividades realizadas em oficinas se reúnem num projeto maior, ‘Cinema dos Quilombos’. Assim, essa primeira mostra, que se inicia agora, traz uma pequena – mas muito interessante – parcial dos quase 70 filmes obtidos até o momento. Porém, sabemos que é um projeto que terá vários desdobramentos nós próximos anos”, promete ele.
O realizador e curador atenta para o fato de que todos os filmes na mostra englobados são interessantes e merecem ser conferidos. “Cada um tem suas particularidades, mas vou destacar o filme ‘Sonhos de um Negro’ por um motivo especial. O Danilo Candombe, seu realizador, é um morador da comunidade do Açude. Atualmente, ele já atua como um profissional da área do audiovisual, inclusive já dirigiu outros filmes. Mas esse foi o primeiro filme dele. Vale lembrar que o Quilombo do Açude, pela sua força cultural, pela proximidade da capital mineira, pela força do candombe e pela simpatia dos moradores, sempre foi um lugar muito procurado por realizadores de cinema. Sempre teve um movimento de cinema por lá. Mas pessoas de fora, como eu, brancos de classe média, que têm seus próprios equipamentos etc. Gente que ia lá, fazia o seu filme do jeito que queria, depois ia embora. O Danilo, observando todo esse movimento, começou a pensar em também fazer um filme. O seu filme. Pegou uma câmera emprestada na escola onde tinha estudado e fez uma ficção sem recurso algum, bem simples, mas que exala essa força de querer fazer um filme, de não medir esforços para que ele aconteça. O desejo de contar uma história de liberdade através do cinema. Eu realmente fiquei muito feliz com esse trabalho, o qual tive a satisfação de ter participado da montagem junto a ele. O filme passou em alguns festivais e agora, na mostra, que é uma ocasião importante de celebrar o cinema dos quilombos, pode ser apreciado como uma das primeiras ficções gravadas num quilombo por um quilombola”, narra.
Danilo era bem jovem à época e pediu a câmera emprestada da escola a uma professora, que, de início, falou que não poderia (deixar o material sair). “Ele, então, explicou a ideia, acabou convencendo ela, que falou: ‘Então, você vem aqui na sexta feira após as aulas, pega, e me traz de volta na segunda, cedinho, vai ter que fazer tudo no final de semana’. E ele gravou com os próprios primos, irmãos e parentes, sem figurino, feito com uma câmera bem simples à época”, elogia Cardes.
Confira, a seguir, outras etapas que resultaram na mostra de agora
Em 2014, Cardes recebu um convite de uma pesquisadora, Alide Altivo, para gravar um documentário no quilombo dos Marques. Viu, aí, uma oportunidade para implementar seu desejo de uma autoria compartilhada. “Disse a ela que toparia fazer o filme se os quilombolas topassem realizá-lo juntos, a partir de uma grande oficina que envolvesse a comunidade toda”. A ideia foi super bem recebida no quilombo e, assim, as duas partes produziram, juntas, o documentário “Quilombo dos Marques Uma História de Luta e Fé”. “O pessoal se envolveu radicalmente no processo e todas as decisões do filme do roteiro à montagem, foram tomados coletivamente em grandes assembleia na sede da associação. Todos nós ficamos muito satisfeitos com o processo e o resultado”. Desse primeiro projeto nasceu uma amizade e um desejo de fazer mais filmes juntos.
Em 2017, Cardes escreveu um projeto para o Fundo Estadual de Cultura, que foi aprovado, e, em 2018, as partes voltaram a trabalhar juntas. A comunidade tinha vontade de fazer uma ficção dessa vez. Como os recursos eram reduzidos, seria um curta “A ideia era que a obra conseguisse apreender um longo trecho da história dos Marques, desde a migração forçada do vale do Jequitinhonha para o vale do Mucuri por conta de conflitos com coronéis locais, o estabelecimento na nova terra, as festas, as plantações e também um grande desafio: tiveram que enfrentar uma grande construtora, que fez uma barragem em suas terras”.
Pandemia
A pandemia foi um imperativo para fazer essa mostra digital, diz Cardes. O que por um lado pode ser bom, analisa ele, para ampliar o alcance dela para qualquer lugar do Brasil. “Acho que é uma coisa que tem que pegar de positivo nisso tudo, de a gente ter essa atenção também ao digital e a esse potencial que ele tem de multiplicação, de participação e por aí vai.. Se não estivéssemos no contexto da pandemia, a mostra seria presencial em alguns cinemas de Belo Horizonte, e, claro, também pretendemos fazer, assim que possível, a circulação desses filmes por quilombos de todo o Brasil. Ainda estamos estudando como isso pode ser feito, mas, hoje, já temos várias comunidades conectadas à internet. Então, a ideia é fazer esses filmes circularem e também buscar recursos financeiros para seguir viabilizando o projeto e, ao mesmo tempo, ampliando suas ações”.
Representatividade
Maya pontua que acesso de todos ao cinema, à cultura e à educação ainda é um debate muito pungente no Brasil. “A maioria das comunidades tem dificuldade de acesso à educação formal e aos bens culturais, mas, mais do que promover esse acesso, uma necessidade que a gente compreende como urgente é reconhecer que essas comunidades indígenas e quilombolas, elas constituem a cultura brasileira, o que a gente chama de cultura popular. Então, é muito grave que seja negado a elas, que são responsáveis pela preservação do patrimônio cultural brasileiro o direito à autorepresentação e o direito ao cinema, a representações artísticas e de linguagem. Acho que essa mostra vem um pouco trazer essa urgência”.
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