Avaliação é da livreira iguaçuense Nathalie Husson, que aborda em entrevista pelo Dia Nacional do Livro a proposta de taxação prevista na reforma tributária e perspectivas para o setor (Foto: Marcos Labanca/Arquivo )
Em 1946, por ação do então deputado federal Jorge Amado, o Brasil assegurou no texto constitucional a isenção de impostos sobre o papel. Anos mais tarde, com a Constituição Federal de 1967, a iniciativa do escritor resultou na ampliação desse benefício
Essa longa tradição, que renuncia a tributos para tornar mais democrático o acesso à cultura literária e ao conhecimento, e que promove a economia do livro, está em risco. O perigo atende pelo nome de reforma tributária, cujo texto da Presidência da República tramita no Congresso Nacional.
É que o governo federal propõe acabar com a isenção do PIS, Cofins e ICMS para o mercado livreiro, instituindo taxação de 12% com a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), caso o projeto tributário seja aprovado.
Na avaliação da proprietária de livraria em Foz do Iguaçu Nathalie Husson, se essa proposta avançar, o livro se tornará inacessível para a população. Para ela, toda a cadeia produtiva, que gera emprego, renda e impostos, também será drasticamente afetada pela taxação.
“O imposto repercutirá no preço do livro para o consumidor, aumentando o valor e o tornando um produto inviável para a maioria”, reflete. “É simplesmente decretar o fim do livro e de sua cadeia produtiva, que abrange autor, ilustrador, designer, editor, gráfico, distribuidor e livreiro.”
Para a empresária, o problema maior não é a taxação em si, mas o alto percentual proposto pelo governo federal, de 12%. “Além de ser marcado pela maior desigualdade social no mundo, o Brasil está em recessão e com a cadeia do livro na sua maior crise setorial desde 2015”, argumenta Nathalie.
A livreira iguaçuense afirma que o mercado editorial brasileiro encolheu mais de 20%, em uma década, devido a múltiplas questões. Segundo ela, ainda houve queda no consumo de alguns gêneros de livros, como os técnicos e universitários e os jurídicos, com redução nas vendas estimada em 30% e 60% respectivamente.
Em entrevista ao H2FOZ, neste Dia Nacional do Livro, Nathalie Husson aprofunda sua análise sobre o impacto negativo da taxação de livros no acesso a esse artefato pela população. Ela ainda aborda a importância da leitura e da cultura.
O Dia Nacional do Livro é comemorado em 29 de outubro como forma de homenagear a Biblioteca Nacional, fazendo alusão à data da inauguração desse equipamento. A comemoração, de abrangência nacional, foi instituída pela Lei nº 5.191, de 1966.
Qual é a relevância do livro ante o avanço da tecnologia?
Apesar da queda na participação, 60% do escoamento do livro físico ainda passa pelas vendas nas livrarias físicas. De fato, a desigualdade tecnológica exclui uma maioria de cidadãos que não têm acesso a um computador ou a uma boa conexão Wi-Fi. O livro tem um papel determinante para essas pessoas, ou só sobram as mensagens de WhatsApp.
Como está o atual cenário econômico do livro?
Os marketplaces [tipo de comércio eletrônico] cresceram na venda de livros, mas não impediram a queda global das vendas. Com a crise setorial, marcada pela recessão econômica mundial, pela crise política brasileira – que engavetou o instrumento jurídico da lei do preço único, impedindo o dumping dos marketplaces – e pela falência e a recuperação judicial de grandes redes tradicionais de livrarias, equivocadas na sua gestão, as editoras sofreram um impacto muito grande na sua liquidez, com impacto negativo sobre a bibliodiversidade.
Já vinha ocorrendo que, para diminuir os custos de produção, as editoras passaram a publicar livros de domínio público, sem custos de direitos autorais, ou revalorizando os títulos dos seus catálogos com um novo design das capas, não necessitando adquirir novos títulos e proceder a novas traduções.
Ora, o livreiro precisa da editora para abastecer a sua loja de novos títulos, como a editora precisa do livreiro para mostrar o seu livro. Foi constatado que o mundo virtual não cria leitores, e a visibilidade do livro nas redes na verdade se revela de custo elevado.
Em relação aos impostos, como foram as decisões no país nos últimos anos?
Na gestão do ex-ministro Gilberto Gil, em 2004, foi reiterada a não aplicação de ICMS sobre o livro. Com a minirreforma tributária do Simples Nacional e a isenção do PIS e Cofins, os impostos que incidem no negócio da livraria passaram de uma média de 10% a 6%. Só um parêntese: em abril deste ano, decisão unânime do Supremo Tribunal Federal estendeu a isenção aos livros eletrônicos.
Livros poderão sofrer taxação de 12% no Brasil – foto FreePik
Isso permitiu que, entre 2006 e 2011, o livro fosse o único produto a sofrer desvalorização de 33% em termos reais, quando a inflação era de 5% anual. Por isso, houve crescimento nunca atingido na história do Brasil, atingindo 90 milhões de livros vendidos, um verdadeiro movimento de democratização do livro. No seu lançamento, o livro “O Código da Vinci” custava R$ 39,90, por exemplo. Dez anos mais tarde, custava esse mesmo preço.
É preciso lembrar que, além dos 6% da tributação, devemos acrescentar IPTU, contribuições sociais laborais e todos os custos fixos para a manutenção de um negócio. Além disso, hoje, outro item que começou a pesar e a dificultar a manutenção de uma livraria é o preço do aluguel.
Como ficam as chamadas pequenas livrarias nesse contexto?
Elas são o alvo fraco da cadeia econômica. Assim, desde 2012, o número de lojas caiu de 3.481 para 2.500. Só para comparar, o número de 3.500 é o total de livrarias na França, um país do tamanho do Paraná! Em comparação com igual período de 2019, entre 23 de março e 19 de abril, em plena pandemia, as vendas caíram para 47,6% em valor e 45,35% em volume. Foi deixado de vender 1.314.781 exemplares, e o faturamento caiu de R$ 125,30 milhões para R$ 65,75 milhões – perda de quase R$ 60 milhões.
Aí vem a proposta da reforma tributária, que afinal não pegou ninguém de surpresa, pois foi anunciada durante a campanha eleitoral: estava claro que o livro ia perder a sua imunidade. Vamos ver a provável decadência de um setor já sinistrado.
O que pode ser feito?
As políticas públicas precisariam investir mais na educação e na cultura. No orçamento executado de 2017, foram R$ 2,4 trilhões, sendo que o setor educacional recebeu só 4,10%, e a cultura, mísero 0,4%, enquanto os juros de amortizações da dívida foram de 39,70%. Isso são dados do SIAFI, que é o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal.
Mas não é a lógica atual dos governantes, que estão mais preocupados com a espoliação do patrimônio público, com a pura e simples transferência dos recursos públicos. Isso quer dizer do patrimônio construído ao longo do tempo pelos impostos do brasileiro – para o setor privado, e, em particular, bancário e fundos de pensões, em vez de administrar e redistribuir os recursos orçamentários de modo saudável e justo.
A falta de políticas públicas, com a nova reforma fiscal, será inclusive fator agravante da crise na cultura, principalmente a do livro.
Governos anteriores recentes implantaram, pela primeira vez na história do Brasil, uma verdadeira política cultural estruturada, com mecanismos de regulação do mercado e descentralização e redistribuição do dinheiro público para os vários atores culturais. É certo que houve falhas, principalmente quanto à cultura digital.
Ora, no dia de hoje, as classes C e D vão ficar excluídas dos dois: tanto do acesso ao livro físico, pelo preço, quanto à publicação digital, pela falta de equipamentos e de conexão.
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