Neste momento em que a democracia no Brasil está em xeque em meio à luta para salvar o País de uma pandemia, que no início da semana já registrava quase 212 mil mortos, o livro “Ator sem consciência é bobo da corte” é lançado para revisar os desafios de um tempo de resistência, marcado pela mobilização e conexão das artes. Escrito por Mariana Rosell, resgata a história do teatro engajado brasileiro nos anos 1960 e 1970.
Mariana Rosell: “O livro é resultado do meu mestrado orientado pelo professor Marcos Napolitano”
Como bem observa Miriam Hermeto, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, que assina a orelha do livro, “esta publicação é urgência e alento”. Destaca a importância histórica do tema: “Caminha pelas relações entre o engajamento clássico dos anos 1950 e 1960 e a ‘dramaturgia de avaliação’ dos 1970 – que ressignificou as derrotas dos anos de maior repressão, sob a forma de um novo ‘frentismo cultural’, em busca de restauração da democracia”. Uma trilha que, segundo a professora, “permite compreender como o teatro reinventou práticas e projetos, redesenhando, em arte e política, horizontes de esperança”.
Para Mariana Rosell, o lançamento do livro – resultado do seu mestrado no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH) – coincide com um momento de reflexões. “Acredito que os estudos relacionados a períodos autoritários sempre têm seu lugar, pois nos ajudam a compreender a complexidade desses momentos e também as possibilidades e necessidades de atuação na resistência contra eles”, afirma. “Porém, no momento atual, isso é ainda mais significativo, já que movimentos e pessoas que defendem o autoritarismo têm ganho voz no espaço público e é cada vez mais necessário lembrar nosso passado recente e colaborar para a conscientização da sociedade sobre os males e legados negativos que esse tipo de experiência nos deixou. Acredito que o livro pode nos fazer refletir não só sobre a necessidade de sempre resistir ao autoritarismo, bem como sobre a importância do engajamento artístico nesse processo.”
Ator sem consciência é bobo da corte leva o leitor a uma volta no tempo através da pesquisa de Mariana Rosell. Um trabalho detalhado que contextualiza o teatro em uma conexão com as artes em geral e traz uma dimensão ampla da trajetória política e cultural dos anos 1960, 1970. E vai além desse tempo com uma análise densa e bem fundamentada sob a orientação de Marcos Napolitano, professor do Departamento de História da USP. Um projeto que continua na pesquisa atual de doutorado da autora.
Bibi Ferreira em Gota d’água (1973), de Chico Buarque e Paulo Pontes – Foto: Reprodução/ Site Memórias da Ditadura
“Rosell analisa quatro peças de teatro que foram grandes sucessos nos anos 1970: Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri, 1973, Rasga coração, de Oduvaldo Viana Filho, 1974, Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, 1975, e O último carro, de João das Neves, de 1964-1976″, explica o orientador Marcos Napolitano no prefácio. “A partir deste corpus, explora os diálogos textuais e contextuais por ela caracterizados como um projeto de dramaturgia comunista/pecebista, dando relevância aos impasses estético-ideológicos que marcavam artistas e intelectuais alinhados a este grupo ideológico.”
Rosell mostra, no decorrer das 396 páginas de seu livro, as relações entre o campo cultural e o campo político e a forma como as manifestações artísticas tensionam o Estado, o governo e os grupos no poder. “Durante o regime militar brasileiro, a cultura desempenhou um papel crucial para a organização do campo de oposição, expressando diversos matizes ao longo de toda a sua duração”, argumenta a pesquisadora. “As artes de espetáculo ocuparam um lugar de destaque nesse contexto não só por terem um apelo importante em relação ao público, mas também pela condição específica que a repressão gera no campo político limitando-o.”
O título do livro Ator sem consciência é bobo da corte, segundo a autora, foi retirado da peça Um grito parado no ar, de Guarnieri. “No enredo, um grupo de teatro tenta a todo custo ensaiar e montar uma peça, lutando contra os problemas econômicos, os desentendimentos internos ao grupo, as ameaça da censura etc. Em dado momento, o diretor da peça, Fernando, destaca a importância do artista ser consciente de seu lugar e seu papel na sociedade, caso contrário, seria apenas um bobo da corte, colaborando para favorecer as classes e sujeitos privilegiados”, conta Rosell. “Achei providencial e sintética para tudo o que os artistas que estudei defendiam: o engajamento político do artista como prática de liberdade de consciência e de cumprimento de sua tarefa social.”
Elenco de Um grito parado no ar (1973), de Gianfrancesco Guarnieri – Foto: Acervo Vladimir Herzog
Mariana Rosell acredita que essa tarefa social defendida nos palcos nas décadas de 1960 e 1970 continua. “As artes sempre têm um papel de resistência e de luta pela construção de uma sociedade melhor. O teatro não está fora disso. Independente de vivermos momentos de franco avanço autoritário, sempre existem artistas envolvidos com pautas sociais, de gênero, de raça, de classe, buscando fazer da sua produção artística um meio de mobilização e conscientização social. Hoje isso segue acontecendo.” A pesquisadora esclarece que há experiências recentes que mostram o quanto o teatro e outras linguagens artísticas são importantes para mobilizar e conscientizar a população politicamente. “As políticas de desmonte promovidas pelos últimos governos vêm apenas comprovar o quanto um artista consciente é ameaçador para quem quer manter o status quo ou, pior, retroceder nas conquistas sociais.”
SERVIÇO: Ator sem consciência é bobo da corte: o teatro engajado nos anos 1960 e 1970, livro de autoria de Mariana Rosell . Lançamento da Paco Editorial, 396 páginas (sem imagens). Preço: R$ 55,90
Por Jornal da USP
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