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Hailton Corrêa de Arruda, o Manga, é considerado um dos melhores goleiros da história do futebol brasileiro. – Acervo Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã
O mais solitário dos jogadores de futebol dentro de campo, o goleiro, tem um dia dedicado à posição: 26 de abril. A data é uma homenagem ao nascimento de Hailton Corrêa de Arruda, o lendário Manga. O ex-jogador completa hoje 84 anos e vive no Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro, onde brilhou por anos no Botafogo (1959/1968) vindo do Sport de Recife. “Foi o maior goleiro da história do clube”, aponta o comentarista da Rádio Nacional, Waldir Luiz, que o viu atuar pessoalmente. “Em estádios menores, eu gostava de ficar atrás do gol para ver as defesas dele”, recorda, destacando que o pernambucano também teve passagem marcante pelo Internacional-RS (1974/1976).
Pela Seleção Brasileira, o goleiro que jogava sem luvas fez parte do elenco frustrado da Copa de 1966 na Inglaterra. “Ele não foi tão feliz atuando pelo Brasil. Teve um amistoso (1965) contra a antiga União Soviética, num Maracanã com 117 mil pessoas, que a gente ganhava por 2 a 0, com gols de Gerson e Pelé. Aí, ele foi cobrar um tiro de meta, a bola bateu na cabeça do russo e entrou. Depois, ainda sofreria o empate”, lembra Waldir.
Além de espetacular embaixo das traves, Manga também se notabilizou pelos casos folclóricos. “Para muitos o maior goleiro da história do futebol brasileiro. Tinha reflexos fantásticos, saía bem, mas gostava de provocar os adversários, em especial, o Flamengo, quando dizia antes das partidas contra o rival que o leite das crianças já estava garantido”, conta o jornalista da TV Brasil, Márcio Guedes, recordando um episódio em 1967, após a final do Campeonato Carioca ganho pelo Glorioso sobre o Bangu de Castor de Andrade por 2 a 1. “Ele jogou muito mal, largou bolas. No dia seguinte, com um revólver, João Saldanha o acusou de ter se vendido e ele saiu correndo. Nunca se confirmou se foi exagero do João ou se realmente aconteceu algo nebuloso, nada foi comprovado, ficou mais como lenda”.
Ex-número 1 do Vasco entre 1982 e 1991, Acácio aponta Manga como maior influência. “Final dos anos 70, ainda no início da carreira, fui jogar no Comercial (MS) e Manga defendia o Operário (MS). Lembro de assistir ao vivo uma partida dele pelo Brasileiro da época contra o São Paulo, do Waldir Perez (goleiro da Seleção Brasileira de 1982). Os paulistas ganharam, mas o destaque foi Manga e aquela atuação marcou minha vida e sequência como profissional”.
Campeão brasileiro em 1989 pelo Cruz-Maltino, Acácio acredita que um bom goleiro precisa de confiança e personalidade. “Antes da final no Morumbi, chamei o De Miranda (Eurico) e perguntei se já tinha reservado o salão para a festa. Ele riu e eu disse que ia fechar o gol e a gente traria o título. Vencemos por 1 a 0. Não se trata de soberba, mas de acreditar no próprio potencial”. (Agência Brasil)
Barbosa, em uma de suas defesas monumentais jogando pelo Vasco da Gama (Acervo UH)
Manga e Acácio tem algo a mais em comum além da qualidade comprovada no campo. Eles são dois do pequeno grupo de goleiros negros a jogar na seleção brasileira de futebol. E isto nos remete à história de um outro vascaíno: Barbosa. O camisa 1 da Copa de 50, realizada no Rio de Janeiro, e que teria completado 100 anos em março deste ano.
“Não tenho confiança em goleiro negro. O último foi Barbosa, de triste memória na seleção”. A frase é de Chico Anysio, em texto publicado no jornal Lance!, em 2006. A afirmação do humorista foi motivada pelo Mundial daquele ano, quando o Brasil teria Dida sob as traves. O texto reflete o tom pejorativo que acompanhou os negros que jogaram na posição do meio do século XX para frente.
O negro Moacyr Barbosa morreu em 2000. Durante 50 anos carregou a culpa pelo vice campeonato amargado pela nação de chuteiras, fruto da derrota na final com o Uruguai, no episódio que se eternizou na história do futebol como “Maracanazo”. Naquele 16 de julho de 1950, a “seleção da camisa celeste” calou os quase 200 mil torcedores que lotavam o recém inaugurado Maracanã.
A equipe brasileira jogava pelo empate para ser campeão pela primeira vez. Perdeu de virada. O Uruguai ganhou o jogo com um gol do atacante Alcides Ghiggia, que num chute seco venceu o goleiro do Brasil. O silêncio sepulcral que tomou conta do maior estádio do mundo logo se transformou em cobrança e julgamento.
Barbosa e os dois zagueiros da seleção brasileira na década de 50 (Acervo UH)
A partir dali, Moacyr Barbosa que já tinha ajudado o escrete nacional a conquistar títulos como a Copa Roca de 45, a Copa América de 49 e as edições de 47 e 50 da Copa Rio Branco, ganhou a alcunha de “o vilão de 50”, carregada via de regra de racismo. E os campos de futebol no país do futebol passaram a conviver com frases do tipo ‘goleiro negro não enxerga à noite’, ‘goleiro negro amarela’, ‘goleiro negro dá azar’.
Aguinaldo Moreira, que atualmente é responsável por selecionar goleiros para as divisões de base do Corinthians, comentou recentemente que a vida para goleiros negros é mais difícil no Brasil, ainda que o país tenha revelado dezenas de nomes gabaritados para serem protagonistas da seleção. Falando à ESPN, disse que além de Manga e Dida, houve gente como Veludo, Jairo, Acácio, Wagner, Helton e Jefferson. Estes até foram convocados, mas poucos chegaram aos Mundiais. Acácio e Jefferson foram reservas em Copas, e Dida foi suplente em duas edições antes de 2006.
“Falar de Barbosa é importante demais porque justamente o colocaram como símbolo de um fracasso, perpetuaram essa velha frase de que ‘goleiro negro dá azar’, ou aquela que diz que ‘é melhor uma pessoa de cor não jogar no gol para evitar sofrimento’. Isso acontece por essa suposta falha do Barbosa. Jogaram uma derrota nas costas dele. Quem perdeu foi toda uma seleção”, disse Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol.
“Essa suposta falha nos traz também àquela máxima de que o jogador negro pode fazer sucesso, mas na primeira falha, a sociedade desumaniza.”, complementou Carvalho em entrevista ao site UOL por ocasião do centenário de Barbosa.
O goleiro Barbosa ainda jogou por um tempo no Vasco. Aliás, ele é o atleta que soma mais títulos na história do futebol daquele clube carioca. Depois foi emprestado para equipes menores. Quando deixou os campos, virou funcionário do próprio Maracanã, dando aulas de natação. Morreu pobre, sustentado por uma pequena aposentadoria e por favores de cartolas vascaínos.
Neste início de temporada, em 2021, outro negro defende o gol do Vasco da Gama. Lucão, formado nas categorias de base do clube, resgata a importância de Barbosa: “Ele nos deu um sopro de esperança. Nos tempos de hoje, temos muitos goleiros negros que são importantes, mas antes do Barbosa não era assim. Dá para ver o legado que ele nos deixou”.
O goleiro Lucão homenageia o centenário de Barbosa no estádio do Vasco (Foto: UOL)
Guatá / Com Agência Brasil, UOL e ESPN.
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