Em 1981, meu pai fazia extensa viagem pela Europa a promover as relações do PCdoB com os outros partidos comunistas europeus. Ele voltou ao Brasil no dia em que eu nasci. Segundo ele, me recusei a vir antes que ele voltasse da Albânia, o que para mim faz todo o sentido. Hoje, no primeiro dia em que tenho que estar no mundo sem meu pai, me abarrota uma tristeza enorme, um pesar colossal. Mas também me preenche uma felicidade que não tem tamanho.
Felicidade pelo privilégio incomensurável de ser sua filha. E de ser mimada por ele como só meu irmão e meu filho sabem como é. Felicidade por ter sido, além de filha, amiga, confidente, crítica, discípula, cúmplice, fã. Essa nossa relação era de muita sintonia. Ele sabia pelo meu olhar ou pela minha voz num instante o meu estado de espírito. E vice-versa.
Parece algo metafísico, e talvez o seja. Só sei que, desde que cheguei, recebida por ele, só me acalmava das cólicas deitada em sua barriga. Era como me fazia dormir durante os primeiros meses, para que minha mãe pudesse também descansar. E assim seguimos por toda a vida. Os dois loucos da família, pouco ou nada práticos, emotivos, ornamentais, supérfluos, imoderados, abundantes, desmedidos, exagerados, megalomaníacos, hiperbólicos.
A comprar mais vestidos de festa do que cabiam na agenda social de uma menina de 7 anos. A comprar mais figurinhas do que cabiam no álbum de um menino de 4. A encher a casa de flores, rosas chilenas bicolor, azáleas, hortênsias e girassóis. Lírios para minha mãe, sempre. A passar madrugadas conversando sobre as questões existenciais de uma menina de 12 anos.
Izabel e Fábio Campana – Fotos: divulgaçáo
E a falar sobre Sabino e Camões; os sermões e o Velho Testamento; Miró e Cartier-Bresson; Ewing, Garrincha e Tyson; Fellini e Glauber Rocha; advérbios, adjetivos e vírgulas; Bach, Pavarotti e Lupicínio; avencas e pastores belgas; Jamil, Wilson, Cosky e Nêgo; arquitetura e gastronomia; amigos e desafetos; Otávio Paz e Helio Vera; conquistadores e libertadores; seu avô Diego e meu avô Dionísio; Maradona, Borges e Gardel; as eternas reformas na casa; vô Guilhobel e robalos; a escolinha do Professor Raimundo, Golias e Cantinflas; remolachas y berenjenas; Elisabeth Taylor e Anitta Eckberg; Gilda e Sabrina; mocotó e carne de onça; o Paraíso e as Coisas Simples; aquarela, lápis e cadernetas; vinhos e água gelada; paixões e utopias; os tempos de chumbo e os anos no Paraguai; minha infância e a do meu irmão Rubens; o neto Antônio.
A encher a casa de comida, de frutas e peixes do mercado público, azeites e conservas, tremoço e pêssego argentino. E de bebidas para os chegados, whisky, vinho e champagne. A encher a casa de gente, de amigos, de música, de voz, do som da máquina de escrever, do som da tevê ligada de madrugada, dos gritos de gol pelo Athletico, dos brados nos dias de maus bofes, de sua voz de radialista. A encher as paredes de arte, quadros, esculturas. A encher o piano de fotos da família, dos amigos e do Antônio. Principalmente do Antônio. A encher a casa e o mundo de livros. Livros e mais livros e mais livros.
E a encher aos seus de amor. Um amor que transborda para mais que a vida do meu pai. Que vive em mim, na minha mãe, no Rubens, no Lucas, na Paola, no Antônio, nos meus tios Carmen, Roberto e Tonico, na Tia Tereza e na minha avó Irene. Nos sobrinhos. E em todos mais que foram amados por ele, seus amigos, que são tantos que não é possível citar. Vocês sabem quem vocês são. Meu pai sempre fez saber seus amores e dissabores. Bem-aventurados os que caíram nas graças de Fábio Campana.
Aprendi com meu pai a amar e ser amada sem mesquinharia. E, por isso, e tanto mais, eu devo a ele quem eu sou. Obrigada, pai. Você não morre. Você é maior que a vida.
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