Cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano – Foto: Paulo Pinto/ AGPT
Uma palavra mais áspera, depois o grito, o tapa, soco, chute, a tentativa de feminicídio. A alegação de ser por ciúme, a culpa da bebida, a não aceitação da separação, o feminicídio. No Brasil, mais de 80% dos crimes de violência doméstica contra as mulheres acontece por parceiros e ex-parceiros.
Com o objetivo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, assim como tentar erradicar a violência contra a mulher, foi criada em 7 de agosto de 2006, a lei nº 11.340, fruto de uma intensa mobilização e da punição do Estado brasileiro. Reconhecida internacionalmente com uma das melhores leis de enfrentamento a violência doméstica e familiar, a Lei Maria da Penha, 15 anos após, ainda precisa que seja cumprida efetivamente.
“Vivemos um estado de calamidade em relação à violência contra as mulheres, e a pandemia nos colocou em uma situação mais séria ainda. A dificuldade das mulheres saírem para fazer as denúncias, a precarização do serviço público que vem acontecendo, as ações, inclusive de privatizações de serviços públicos que acabam diminuindo a qualidade dos serviços de apoio e amparo às mulheres, pioram o quadro”, destaca a coordenadora do Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios, Ariane Leitão.
No Brasil, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos foi vítima de algum tipo de violência na pandemia. Cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. A cada minuto, oito mulheres apanharam no país, 4,3 milhões (6,3%) foram agredidas fisicamente com tapas, socos ou chutes. O tipo de violência mais frequentemente relatado foi a ofensa verbal, como insultos e xingamentos, em que cerca de 13 milhões de brasileiras (18,6%) passaram por este tipo de violência. Os dados são da pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgada em junho deste ano.
Ainda, conforme aponta o levantamento, os impactos da violência repercutem no sustento dessas mulheres. 61,8% das mulheres que sofreram violência no último ano afirmaram que a renda familiar diminuiu neste período, já as que não sofreram violência este percentual foi de 50%; 46,7% das mulheres que sofreram violência também perderam o emprego. A média entre as que não sofreram violência foi de 29,5%.
“Houve um incremento nos números de feminicídios e violência doméstica desde o início da pandemia pela covid19, provavelmente por conta da crise econômica e da necessidade de confinamento. Não se descarta também que o crescimento dos números tenha ocorrido pelo incentivo a denunciar. A maioria das vítimas ainda são mulheres negras, pobres e de baixo grau de escolaridade. Atrás desses números encontra-se a cultura do machismo, as dificuldades no fluxo de atendimento das vítimas, o descrédito no sistema de justiça e o receio de denunciar”, destaca a defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (NUDEM – DPE/RS), Tatiana Kosby Boeira.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, do FBSP, de modo geral os dados da violência contra mulheres e crianças tiveram uma leve queda (lesão corporal, estupro, por exemplo), em contrapartida houve um aumento dos feminicídios. De acordo com o levantamento, em 2020 o país teve 3.913 homicídios de mulheres, dos quais 1.350 foram registrados como feminicídios, média de 34,5% do total de assassinatos. “Em números absolutos, 1.350 mulheres foram assassinadas por sua condição de gênero, ou seja, morreram por ser mulheres”, aponta o levantamento. A maioria desses crimes foram cometidos contra mulheres negras.
46,7% das mulheres que sofreram violência também perderam o emprego. – Foto: © Marcos Santos/USP
Para a advogada Renata Jardim, coordenadora de programas da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, há um problema sério em relação aos dados de violência contra as mulheres. Em sua avaliação não foi possível articular um sistema nacional para que pudesse ter uma ideia mais clara em relação aos números da violência e de feminicídio. “O que temos mais organizado são os dados do sistema de justiça e do sistema de segurança pública de delegacias, que são aquelas mulheres que conseguiram fazer a denúncia, que ingressaram com o processo e depois os dados da saúde, mas eles não dialogam entre si”, expõe. Ela frisa que mesmo com os números capturados, eles retratam um quadro muito alarmante, em que há um grande percentual de subnotificações. “Precisamos olhar para os números oficiais como uma ponta desse iceberg, eles têm uma gravidade ainda maior”, frisa.
“O Estado brasileiro não acordou um dia entendendo que precisava reparar um mal histórico da sua negligência em relação a desconsideração da condição das mulheres, o Estado brasileiro foi condenado na organização de estados Americanos por conta da denúncia relativa ao caso da Maria da Penha Fernandes, sendo que outros, muitos outros casos de mulheres também já tinham sido denunciados, já haviam sido denunciados naquela corte internacional”, contextualiza a psicóloga e presidenta da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, Cristina Schwarz.
Conforme destaca Cristina, é uma lei que criou um fato social, que inaugura um campo de discussão que estava distante da sociedade. “Não é à toa que muitas pesquisas mostram que a Lei Maria da Penha é a lei mais conhecida no Brasil. Ainda que as pessoas possam não conhecer exatamente os termos dela, as pessoas sabem que se trata de uma lei de violência contra as mulheres, e entendem a partir daí então que a violência contra as mulheres é um crime. Isso possibilita o debate sobre a condição de violência que as mulheres vivenciam”, comenta.
A cientista social, especialista em políticas públicas de enfrentamento à violência contras as mulheres, diretora da Secretaria de Políticas para Mulheres e coordenadora do Ligue 180, entre 2003 e 2016, Ane Cruz, reforça que a lei só existe por esforços do movimento feminista que foi o maior protagonista nesta conquista. “Nunca antes uma legislação teve este feito. A lei é muito completa, pois trouxe responsabilidades para todas as esferas públicas e para a sociedade civil. Ou seja, todos os entes federados têm atribuições na lei”, afirma.
Entre os avanços que a lei trouxe para a defesa das mulheres, a cientista social destaca a tipificação e definição de violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo as formas de violência doméstica como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral; de que a violência doméstica contra a mulher independe de orientação sexual; a proibição de penas pecuniárias (antes da lei, por exemplo, o agressor podia responder ao crime pagando uma cesta básica), entre outros.
“Todos esses avanços só são possíveis ou reais, se todos os setores envolvidos cumprirem com suas partes. Principalmente se a sociedade denunciar os casos de violência contra as mulheres e se o Poder Judiciário julgar e punir com rigor estes casos”, ressalva Ane.
Na avaliação da cientista social, ao ser indagada por que a situação continua sendo tão grave, está a cultura machista em que estamos inseridos. “Uma cultura em que a sociedade banaliza e normatiza a violência contra as mulheres. Uma cultura machista ainda imposta nas academias que formam advogados e advogadas, futuros juízes e juízas, com cabeças retrógradas. Uma cultura machista institucional, dentro dos poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário. Uma cultura machista na mídia que ainda permite que músicas misóginas sejam veiculadas e assim por diante. Há muito que ser feito no âmbito do enfrentamento da cultura machista que permeia nossa sociedade”, contextualiza
Apesar dos avanços como a expedição da medida protetiva, a coordenadora da Força-Tarefa Interinstitucional de Combate aos Feminicídios, Ariane Leitão, enfatiza que ainda há uma grande dificuldade na implementação da lei 15 anos depois. “Temos um Estado estruturado a partir da perspectiva patriarcal, machista e inclusive misógina, e as nossas instituições repercutem, reproduzem esses preconceitos e essas violências. Nesse momento tanto a mulher como seus dependentes já podem ter sido vítimas de crimes fatais como é o caso de feminicídio. Existem casos ainda do Judiciário, da própria polícia exigir a apresentação de testemunhas para dar certeza da existência dessa violência, quando em muitas vezes, quase a maioria absoluta dos casos a violência ocorre dentro de casa sem testemunhas. Se a gente for analisar friamente a letra fria da lei nós ainda estamos em uma situação extremamente grave de descumprimento dessa legislação, essa é a realidade desses 15 anos da lei, uma realidade muito pior do que já tivemos”, expõe.
Conforme complementa Cristina Schwarz, ainda se vivencia um cenário em que as mulheres chegam às delegacias e são questionadas sobre a legitimidade dos seus pleitos. “Elas são julgadas, desmerecidas, e muitas vezes saem de uma delegacia com a ideia, com a confirmação de que elas não têm direitos, e isso é muito grave, porque isso é uma violência institucional. Vivenciamos um cenário de consolidação parcial dessas estruturas previstas pela lei, mas com uma lógica de funcionamento dentro dessas estruturas ainda muito opressora às mulheres, e muito pouco sensível a esse fenômeno da violência que elas sofrem”, pontua.
Tanto Cristina quanto Ariane chamam atenção para o desfinanciamento que as políticas públicas de combate à violência contra a mulher vêm sofrendo nos últimos anos, em especial sob o governo de Jair Bolsonaro. Há, de acordo com elas, após a aprovação da lei, mais especificamente entre os anos 2011 a 2015, um incremento, por meio da constituição da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, para a criação das políticas públicas. Após o golpe que tirou Dilma Rousseff da presidência, aponta Ariane, há o desmantelamento dessas políticas.
“Temos agora um governo genocida que tem mirado na vida das mulheres, na dignidade das mulheres. Este ano tivemos o parco recurso para política para mulheres em nível nacional, com somente 23% do recurso aplicado”, afirma a coordenadora.
Para Renata Jardim, o desafio maior no momento é a implementação daquilo tudo que foi previsto na lei. Segundo avalia a advogada, tem se observado propostas legislativas com um recorte mais punitivista da lei. “Seu eixo central não é a punição, mas a garantia de políticas, serviços e ações voltados para prevenção, atenção humanizada às mulheres em situação de violência, responsabilização e garantia de direitos. Não podemos mais acreditar ou propagar que o recrudescimento de penas, em alterações legislativas centradas na criação de novos tipos penais, seja a resposta que as mulheres precisam. Para erradicar e enfrentar a violência é preciso um conjunto articulado de serviços e políticas, que garantam uma resposta imediata quando a violência acontecesse, que atue na raiz cultural que banaliza e legitima condutas que violentam as mulheres.”
Para a defensora pública do estado, Tatiana Kosby Boeira, os números da violência contra as mulheres comprovam que apenas o acirramento da punição não basta. “Não basta elevar penas, sem políticas de conscientização e educação. Também se faz necessária a implementação de políticas públicas que promovam o acolhimento e o tratamento psicológico das mulheres vítimas de violência, bem como um olhar para o agressor, buscando reabilitá-lo”, expõe.
“O ciclo de violência somente será rompido com o acesso à educação e com o implemento de meios que possibilitem que as mulheres, vítimas de quaisquer tipo de violência, possam vir a refazer suas vidas, com acesso ao mercado de trabalho, condição de criar seus filhos e atendimento psicológico para vencer os traumas”, conclui.
“Celebramos os 15 anos da lei no sentido de reforçar a importância desse instrumento, mas com grande preocupação e com alerta no sentido de que é preciso investir na pauta das mulheres. Romper com essa ideia de que as estratégias punitivistas vão garantir alguma mudança nesse cenário. Temos que trabalhar com ações de médio e longo prazo. Precisamos mudar a nossa cultura, criar serviços, garantir acesso aos mesmos e qualificá-los. Precisamos conversar, dialogar e colocar isso no centro do debate da nossa sociedade”, finaliza Renata.
Para a cientista política Ane Cruz, além da pandemia, temos que enfrentar uma endemia no Brasil que é a violência contra as mulheres e os feminicídios. “Esta endemia só terá cura, se tratarmos de enfrentar o machismo à altura, com educação não sexista nas escolas, por uma cultura não violenta e não misógina, punição severa e reeducação dos agressores.”
Na avaliação de Cristina, para ocorrer o rompimento da violência contra as mulheres é essencial que haja ofertas de acolhida, de serviços de oportunidades para que essa mulher seja capaz de vislumbrar condições de materializar esse rompimento.
Como aponta o Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2021, entre as vítimas de feminicídio no último ano, 61,8% eram negras/ Foto: Giorgia Prates
Algumas leis têm surgido nesse sentido, como a aprovada na Assembleia gaúcha no dia 10 de julho, que prevê o abrigamento para mulheres e crianças vítimas de violência, ainda sem sanção do governador Eduardo Leite. Ou a Lei 14.022/2020, que completou um ano e que prevê a intensificação da Lei Maria da Penha na pandemia e estende seus efeitos para crianças e adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.
“Todas as ações legislativas que vêm surgindo são muito importantes, mas infelizmente elas param nos poderes Executivo e Judiciário, que são poderes calcados nessa estrutura extremamente machista, misógina, patriarcal, racista. São as mulheres que mais morrem no Brasil, são as crianças negras que estão ficando mais vítimas do feminicídio, da pandemia, são as mulheres negras que mais sofrem violência, são elas que mais sofrem com a não atuação dos governos”, finaliza Ariane.
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