. Por Claudio siqueira / H2Foz – Novembro é o mês que inicia com reverência à morte. Cristãos em geral observam no dia primeiro o Dia de Todos os Santos e Mártires e no segundo dia o de todos que partiram. No norte celebravam desde épocas imemoriais o Samhain que depois veio a ser o Halloween. Aqui no sul muito antes dos portugueses e espanhóis as civilizações maias e astecas praticavam o culto que veio a se tornar o Dia de los Muertos.
Novembro marca o fim da primavera no norte e o fim do outono no sul. Talvez esse seja o motivo de os cultos à morte no norte sejam de medo e no sul sejam de alegria.
A troca das estações sempre representaram em todas as culturas um período de menor resistência ao véu que separa nosso mundo real do sobrenatural. Então no período que corresponde hoje a novembro, as mais diversas culturas criam que os espíritos e entidades do submundo passeiam entre nós na vigília da noite no início do mês. Esse conjunto de crenças levou ao surgimento da prática da magia e feitiçaria em todas as culturas conhecidas. De modo geral, feitiçaria e bruxaria são práticas místicas ou supersticiosas executadas com o fim de moldar a realidade com a invocação ou evocação de alguma entidade sobrenatural, conforme a fé e crença determinada.
A cristianização do ocidente, a Reforma Protestante e o desenvolvimento do capitalismo levaram à “demonização” das práticas mágicas culturais ditas pagãs e isso teve consequências com o estabelecimento formal do patriarcado já existente com a queima das bruxas, que persiste até hoje na forma de discriminação de classe, raça ou gênero.
A isso denominamos ideologia, ou seja, o conjunto de ideias dominantes de uma classe sobre outra, ou a falsa realidade. A ideologia molda a política e a economia e ambas moldam a realidade e direciona a ciência. A ciência não produz inverdades mas sendo usada pela ideologia pode ocultar as verdades.
Tal debate, sobre a ciência e a construção da realidade, é estabelecido por Isabelle Stengers, que segundo a Wikipédia é uma “filósofa e historiadora belga notável por sua contribuição na filosofia da ciência”. Ela é autora de livros sobre Teoria do Caos, em parceria com o químico russo Ilya Prigogine.
Num diálogo com a escritora e ativista neopagã Starhawk, Isabelle Stengers discute as possibilidades de reclaim – que ora pode ser “reativar”, ora como “retomar”; da magia como ação de resistência anticapitalista. Dessa conversa nasceram duas obras: La sorcellerie capitaliste – Pratiques de désenvoûtement, de Philippe PIGNARRE, Isabelle STENGERS e Au temps des catastrophes – Résister à la barbarie qui vient, de Isabelle STENGERS.
Stengers também defende que é preciso trazer as ciências para a política para conferir novos sentidos para a aventura da experimentação e da especulação que envolve toda forma de pensamento.
Numa ótica material, resgatar e reivindicar antigas práticas ditas pagãs (não modernas-ocidentais) leva a uma crítica da realidade por uma perspectiva diversa da ideologia dominante – a da burguesia, e assim ampliar a compreensão do real e material sem as correntes do pensamento político estabelecido. Ou seja, a ciência obedece interesses capitalistas e portanto a ciência é política. Resgatar saberes e conhecimentos distintos do ocidental levará a ciência a um patamar de maior abrangência e de liberdade, pois as referências de real serão maiores, sabendo que cada cultura distinta tem uma forma distinta de construir a realidade.
No diálogo apresentado, reativar/retomar a magia não é simplesmente recuperar algo do passado, mas construir pontes e ampliar o conhecimento e a ciência. Nesse esforço, nada pode ser desprezado e nenhum conhecimento deve ser entendido como menor que outro, mas apenas diverso e o trabalho consiste em encontrar paralelos e buscar sínteses. “Unidade na diversidade”, um lema celta que foi apropriado pelos cristãos anglosaxãos.
Todo o foco no fim desse debate está em que para se opor ao capitalismo como o temos hoje, precisamos “desfetichizar” (desconstruir o fetiche) do capital. A magia seria uma outra forma de realidade construída que se opõem à realidade construída pelo capitalismo. Assim, para se opor à opressão do capitalismo atual não podemos simplesmente buscar o poder, mas interromper o sentimento de impotência das bases. O poder é democratizado quando há empoderamento dos oprimidos. Todos tendo poder, o poder desaparece…
O espaço aqui é resumido para termos uma maior explanação do tema, fica a sugestão da leitura do artigo “Reativar a feitiçaria e outras receitas de resistência – pensando com Isabelle Stengers” de Renato Sztutman.
SERVIÇO: As obras de Isabelle Stengers podem ser encontradas ou encomendadas na Kunda Livraria Universitária.
Obras traduzidas:
A Nova Aliança: a metamorfose da ciência (1979), em coautoria com Ilya Prigogine, Brasília, Editora Universidade de Brasilia, 1997. “Quem tem medo da ciência? : ciencia e poderes”, São Paulo, Siciliano, 1990. “O coração e a razão : a hipnose de Lavoisier a Lacan”, em coautoria com Leon Chertok, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990. “O Fim das Certezas: tempo, caos e as leis da Natureza”, em coautoria com Ilya Prigogine, Editora UNESP, 2011 ‘”A invenção das Ciências Modernas”, São Paulo, Editora 34, 2002. “No Tempo das Catástrofes”, São Paulo, Cosac Naify, Coleção EXIT, 2015.
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