Registro feito em São Paulo por volta de 1942 mostra Hildegard Rosenthal trabalhando no ampliadorAutorretrato Hildegard Rosenthal / Instituto Moreira Salles
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. O livro é resultado de seminário homônimo realizado em 2017, na instituição, a partir de convocatória internacional. O evento, por sua vez, foi um desdobramento da pesquisa de pós-doutorado desenvolvida por Zerwes, com supervisão de Costa. As duas iniciativas contaram com apoio da FAPESP. “Mais do que simplesmente revelar fotógrafas desconhecidas ou aspectos curiosos de suas biografias, nosso objetivo foi questionar os motivos que levaram as mulheres a ter menor visibilidade nas narrativas hegemônicas da história da fotografia e refletir como vêm sendo retratadas”, aponta Zerwes, hoje em temporada de estudo no Centro Alemão de História da Arte em Paris.
. Daí o recorte de gênero. “Muita gente acha que os estudos de gênero são apenas sobre mulheres, mas é possível estudar gênero sob a perspectiva dos homens ou da comunidade LGBTQ+”, lembra Costa. “A meta é entender, por exemplo, de que forma o gênero criou ou não oportunidades para que determinado grupo realizasse seu trabalho e fosse reconhecido por ele.” Com ela, concorda Zerwes. “No nosso caso, os estudos das questões de gênero podem iluminar as relações de poder que sustentam o circuito profissional e artístico da fotografia em diversos momentos históricos”, explica.
. De acordo com o livro, a presença da mulher na fotografia no século XIX e início do século XX esteve vinculada, sobretudo, às atividades manuais nos bastidores dos empreendimentos familiares e dos estúdios comerciais. Isso ocorreu tanto em países da Europa quanto nos Estados Unidos e na América Latina. “As mulheres, cujo acesso era vetado às academias de arte, buscavam dedicar-se a atividades alternativas em que podiam exercer uma ação criativa”, escrevem Costa e Zerwes na apresentação da obra. “No campo da fotografia, elas eram valorizadas por uma suposta habilidade manual inerente, que as tornavam bem cotadas para os trabalhos de laboratório, assim como para o retoque e colorização de cópias.”
. No livro, Costa assina o artigo “No limite da invisibilidade: Mulheres fotógrafas no Brasil na primeira metade do século XX”. Uma das quatro profissionais cuja trajetória a pesquisadora analisa é a carioca Mary Zilda Grassia Sereno (1909-1998), que atuou na imprensa brasileira entre os anos 1940 e 1970. “Ela passou por diversas editorias, mas gostava mesmo de fotografar futebol”, relata Costa. “Entre outros feitos, foi a única fotógrafa escalada para cobrir a Copa do Mundo de 1950. Ao entrar em campo, no Maracanã, acabou sendo estrondosamente vaiada pelo fato de ser mulher.”
. Segundo Costa, ainda são poucos os estudos de fôlego que relacionam fotografia e gênero no mundo. No Brasil, o interesse pelo tema intensificou-se há cerca de 10 anos. O avanço das pesquisas vem revelando detalhes sobre a trajetória de personagens como a alemã Fanny Paul Volk (c. 1867-1948), que migrou para Curitiba (PR) com a família no final do século XIX. Em 1881 ela começou a trabalhar nos bastidores de um estúdio fotográfico do conterrâneo Hermann Adolpho Volk, com quem se casaria cinco anos mais tarde. “Fanny aprendeu a fotografar muito cedo com a mãe, Anna, que também trabalhava no estúdio”, conta Giovana Simão, autora da tese de doutorado “Fanny Paul Volk: Pioneira na fotografia de estúdio em Curitiba”, defendida no curso de sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
. Mais tarde, em 1904, Volk decidiu regressar sozinho para a Alemanha. Antes, transferiu o estúdio para a ex-mulher, que se tornou a principal fotógrafa e administradora do empreendimento, frequentado pela elite local. “Ela criou uma rede de correspondentes no Brasil e na Alemanha, importava equipamentos de lá e anunciava vagas de emprego em publicações de Berlim”, prossegue Simão, professora da Escola de Música e Belas Artes da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). “Também fez fotos fora do estúdio, inclusive de homens, uma ousadia para a época.” Foi assim até 1918 quando, por volta dos 50 anos, Volk vendeu o negócio e passou a se dedicar aos netos. “Essa retirada de cena contribuiu para seu apagamento na história da fotografia brasileira”, observa a pesquisadora.
Retrato de Angelo Casagrande e seu filho Elviro, feito em Curitiba por Fanny Volk / Casa da Memória – Fundação Cultural de Curitiba
. Zerwes recorda que entre 1910 e 1930 emergiu na Europa, sobretudo na Alemanha, a figura da “mulher moderna”, impulsionada pela entrada feminina na esfera pública e no mercado de trabalho. Tal imagem, propagandeada mundo afora pela imprensa da época, foi particularmente significativa para a história da fotografia latino-americana. “Ao mesmo tempo que foi um traço cultural muito forte na Alemanha da República de Weimar (1919-1933), de onde vieram ou por onde passaram muitas das fotógrafas que se estabeleceram na América Latina durante a década de 1930, também o ofício da fotografia foi muito procurado por essas mulheres, por ser um dos poucos já franqueados à participação feminina naquele período”, explica a pesquisadora.
. Entre elas estão Alice Brill (1920-2013) e Hildegard Rosenthal (1913-1990), que chegaram ao Brasil na década de 1930. “Além da arquitetura e de cenas urbanas da área central de São Paulo nos anos 1940 e 1950, elas fotografaram seus frequentadores, personagens anônimos de diferentes classes sociais”, conta a pesquisadora Yara Schreiber Dines, autora do livro Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógrafas de além-mar – Cosmopolitismo e modernidade nos olhares sobre São Paulo (Intermeios, 2020). No livro, fruto da pesquisa de pós-doutorado que realizou na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Dines, que integra o Grupo de Antropologia Contemporânea (Gepac) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, também analisa dois ensaios fotográficos de caráter ficcional publicados por Rosenthal no início da década de 1940. O primeiro reúne uma série de autorretratos, enquanto o outro, batizado pela pesquisadora de Alter ego, traz uma modelo circulando pelo centro paulistano. “Nas duas séries, ela busca criar a imagem de uma mulher moderna e independente”, analisa.
. Segundo Kátia Hallak Lombardi, professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), as fotógrafas começaram a ganhar visibilidade no cenário nacional a partir da segunda metade do século XX, a exemplo de brasileiras como Nair Benedicto e Rosa Gauditano. É também o caso de Claudia Andujar, suíça naturalizada brasileira, que se mudou para o país em 1955 e hoje é reconhecida não apenas por seu trabalho fotográfico, mas também pela luta em prol dos Yanomami (ver Pesquisa FAPESP nº 276). “Ela fez muitas imagens do corpo feminino, sobretudo das mulheres indígenas, mas não retratou as mulheres de forma idealizada nem estereotipada. O que vemos são registros de mulheres integradas à simplicidade do cotidiano”, observa a pesquisadora, autora de um dos artigos no livro organizado por Costa e Zerwes.
. A obra de Andujar pode ser vista em livros e em espaços como o Instituto Inhotim, em Minas Gerais, que abriga uma galeria com mais de 400 imagens. “Andujar é exceção. A falta de arquivos representa um empecilho para pesquisadores interessados em investigar a trajetória de fotógrafas no país”, diz Lombardi. De acordo com Helouise Costa, muitos desses acervos se perderam ao longo do tempo. “Alguns foram destruídos pelas próprias fotógrafas ou por suas famílias, que não viam o valor do que foi produzido”, diz. “Na falta das imagens, para entender a trajetória dessas fotógrafas os pesquisadores acabam voltando-se para o contexto histórico e sociológico.”
. “Não se pode tratar de fotógrafos ou de séries fotográficas sem passar por suas publicações ou pelos debates que se consolidaram nas páginas impressas dedicadas aos seus trabalhos”, defende Eduardo Augusto Costa, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Especialista em arquivos e coleções, ele identificou cerca de 1.300 livros e catálogos de fotografia lançados no Brasil ao longo do século XX. A meta é criar uma biblioteca pública sobre o assunto. Conforme o pesquisador, ainda que se tenha publicado livros de fotógrafas como, por exemplo, da carioca Claudia Jaguaribe e da inglesa naturalizada brasileira Maureen Bisilliat, e de historiadoras da fotografia como Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, o espaço reservado à produção das mulheres segue restrito no país. “E parte da história que se conhece é resultado do que foi editado, publicado e divulgado”, constata.
. Segundo o professor da FAU, o mercado editorial ligado à fotografia ganhou força no Brasil a partir da década de 1970 graças à Fundação Nacional de Artes (Funarte), órgão criado em 1975 e vinculado ao então Ministério da Educação e Cultura (MEC). “O núcleo de fotografia da Funarte, estruturado em torno da galeria da fundação, que viria a se consolidar de forma mais organizada por meio do Instituto Nacional de Fotografia da Funarte, foi responsável pela edição de mais de 50 publicações entre os anos 1970 e 1980. Dentre elas estavam três catálogos sobre o lugar das fotógrafas no cenário brasileiro, algo pouco usual na época”, relata o especialista, também autor de artigo que integra o livro organizado por Costa e Zerwes. Para ele, a atuação da Funarte explicita a importância de políticas públicas dedicadas à cultura. “Muitas dessas iniciativas voltadas à fotografia no âmbito da Funarte se devem à participação de mulheres que trabalhavam na instituição naquele momento, como Elizabeth Carvalho e Solange Zúñiga.”
Captadas pelas lentes de Claudia Andujar, Susi e Mariazinha Korihana thëri banham-se em igapó, em Roraima. A imagem integra a série A floresta, de 1974 / Galeria Vermelho – Sem crédito
. Resgatar a atuação de mulheres na fotografia etnográfica é o mote do projeto Antropologia, fotografia e patrimônio material no Brasil: Uma perspectiva de gênero, desenvolvido pelo grupo de pesquisa Gêneros, Imagens e Políticas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GIP-UFRGS). “Sobretudo na primeira metade do século XX, muitas dessas mulheres que realizaram trabalhos de campo com seus maridos eram vistas como meras assistentes de pesquisa, a exemplo da antropóloga, etnóloga e museóloga Berta Gleiser [1924-1997], que foi casada com o também antropólogo Darcy Ribeiro [1922-1997]. E essa função nem sempre era reconhecida na autoria dos trabalhos, principalmente no que diz respeito à produção de imagens”, aponta a antropóloga Fabiene Gama, coordenadora da pesquisa.
. Em parceria com as antropólogas Barbara Copque, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Fernanda Rechenberg, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Gama também organiza um dossiê sobre gênero e imagem previsto para sair ainda este ano na revista Iluminuras, da UFRGS. “A proposta é discutir não apenas fotografia, mas também cinema e ilustração”, diz Rechenberg, à frente do Grupo de Estudo Imagens e Feminismos (GIF) da Ufal, parte de projeto de pesquisa sobre a cena fotográfica na capital alagoana. “Uma das ações da pesquisa foi mapear as fotógrafas que atuaram em Maceió a partir da década de 1990. Outra frente se voltou para os coletivos fotográficos compostos por jovens mulheres que estão emergindo na cidade nos últimos anos”, explica Rechenberg. “Queremos entender por que essas profissionais tiveram e têm menor projeção do que os homens e como os marcadores de classe e raça aprofundam essa assimetria de gênero”, conclui.
. Projeto As noções de humanismo na fotografia documental entre as décadas de 1930 e 1950 (n° 14/14565-2); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Helouise Lima Costa (USP); Bolsista Erika Cazzonatto Zerwes; Investimento R$ 272.255,55. . Livros COSTA, H. e ZERWES, E. (org.). Mulheres fotógrafas/mulheres fotografadas: Fotografia e gênero na América Latina. São Paulo: Intermeios, 2021. DINES, Y. S. Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógrafas de além-mar: Cosmopolitismo e modernidade nos olhares sobre São Paulo. São Paulo: Intermeios, 2020.
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