Reprodução do quadro “Epílogo”, de Fernando Naviskas
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Pode parecer pretensão, mas existe um fator invasivo, entre o corpo e a imagem das coisas, como se fosse uma presença inevitável, tão propriamente genuína, que parece ser o que realmente sou, algo que se insidia entre o SIM aquiescente a tudo, e o NÃO, que repele e questiona. O SIM, do que se constituiu pela ação compulsória da civilidade e da cidadania, pela qual vociferamos a covarde protuberância de nosso encaixe irrecorrivelmente adaptado ao senso comum, o SIM das atitudes impregnadas que são pelos ritos da aldeia, dependentes da marca indelével que nos torna irreconhecíveis na hora crítica da identificação na delegacia, pois nos tivemos ajeitado por todo o sempre na igualdade aparente que não permite saber quem de fato somos… aquele SIM que nos acalma, da rebeldia vistosa que nos adequa ao sofrimento impositivo, que é o próprio significado da incongruência (pois não nos suportamos mesmo sendo praticamente iguais) e ao mesmo tempo nos liberta no anonimato estratégico de estar na mediocridade, em cujas poças de merda nos lavamos da crise existencial, porque está tudo ali muito bem guardado, naquela ata insensata em que repousam sem cansaço nossos nomes, sobrenomes, o dia em que nascemos todos os dias, o SIM para nossa naturalidade, a nacionalidade, os endereços, os graus de escolaridade, os códigos para onde devemos enviar-nos as promessas, os tipos sanguíneos e os empalidecidos pela impotência, SIM para os títulos, antecedentes criminais – incluindo os presumíveis – receitas médicas, psicanalíticas, religiosas, SIM às escrituras de posse – imobiliárias, profissionais, matrimoniais, paternais – testamentos patrimoniais – incluindo aí artes e bons comportamentos… Pois bem, uma força nova insidia-se entre esse destino sem resistência e a outra margem, a íngreme selva do NÃO, que cultivamos a cada instante de solidão dentro dos grupos e das relações, tremulando a bandeira do nosso país imaginário, devastado dentro de nós, enquanto propalamos suas incomparáveis belezas naturais para inspirar o turismo sexual do bem e do mal, pois somos diferentes numa peculiaridade descendente de velhos parâmetros, aquele NÃO que nos mantém hirtos como muros chineses, pra não permitir que nenhum turista de fato adentre ao nosso condado, a nossos segredos, um NÃO, para que não se saiba de antemão o que nem nós mesmos sabemos, para que nossa musculatura seja nosso perene escudo, e não um artefato que permita nossa localização no sítio arqueológico da subcultura, um NÃO que nos mantenha altivos na sopa intragável da sociedade de monocultura, livres da pecha, da presunção de inocência, da previsibilidade atrofiante, da comparação angustiante que a igualdade enseja na patifaria cultural, nos impondo, como voz dissonante, o texto discordante que garante o espaço mínimo de um pretensa credibilidade, e fugir assim da força da corrente, que nos arrasta pelo oceano do desconhecido, nos arrasta atados a outros criminosos dessa mesma pena preestabelecida, um NÃO para que a morte inevitável seja pelo menos num local sagrado, longe dos cemitérios e dos artefatos do imponderável, na ilha que os mapas desconhecem, para que se esteja livre da exumação dos lobos famintos da matilha que procura ininterruptamente a prova de nossa indecência – o NÃO! – o NÃO que nos afasta dos afazeres, dos horários, das respostas, dos compromissos, da normalidade alimentada por entorpecentes e fast food, enquanto nos garante a atenção da discórdia… .
Pois entre aquele SIM e este NÃO, lampeja uma voz concreta, estruturada não pela inquestionabilidade da História ou a densidade indestrutível da Cultura, mas por uma força da Natureza, uma energia limpa, tão familiar quanto desconhecida, uma voz inflexível que não necessita dos truques ideológicos, nem de originar-se nalgum tecido resistente social ou pessoal, ou nas peripécias inesgotáveis da ciência e seus postulados postergados com estabilizantes… talvez seja a Percepção em si mesma, ou a fala intermitente de Deus, tem que ser algo que nos demonstre o estado das coisas pós signos, a intenção das coisas pós símbolos, e todas estas coisas nuas e cruas antes de seus nomes, e as outras coisas também – por que não? – sem a imundície perpetuada pelos poderes e pelas fraquezas, o sítio arqueológico sem vigias, sem terras ou areias ou véus ou certezas, sem as cidades vulneráveis sufocando-as com sua fragilidade, sem o sacolejo provocado pela ciência autoritária e a ignorância autoindulgente, algo que nos inocule calma e objetivamente a vida como ela quer, e talvez possa até ser a revelação drástica e pós sagrada desta vida como ela de fato é… então essa sensação me eflui como o assalto total, pacífico, como deve ser um assalto em plenitude, uma iluminação num estádio de futebol, e por mais que meus referenciais ancestrais do SIM e do NÃO estejam ainda fortes e ágeis, em prontidão de ataque e de defesa, essa ‘palavra’ atravessa como um dardo atravessando a enciclopédia da humanidade, o dicionário dos signos, o livro sagrado dos símbolos, e as páginas amarelas do grande obituário de negacionistas e afirmacionistas, e atinge ao fim de seu retilíneo percurso o alvo único do universo, o local exato da exatidão que só a percepção possui, a confissão honestíssima dos sentidos do corpo e do espírito… é Deus? ou seria algo ainda mais ontologicamente distante dos substratos consolidados na cultura e na ruptura? Talvez seja a resposta, a definitiva e indiscutível síntese, aquela que não se pretende, nem se busca, mas vem gratuita e simples pelos canais rudimentares de nossa percepção: a Verdade… e é tão bom imaginar que talvez seja esse mesmo o propósito de tudo, neste suplício purgatório da civilização, nesta solidão imortal da existência – o Universo todo esclarecido por nossos pessoais sistemas de captação e tradução… só isso… .
Então, não raro, e, aliás, muito comumente, recebo e aceito essa emissão, como a revelação simples da verdadeira face das coisas, o que me permite não seguir o mapa turístico da episteme e ainda assim chegar, chegar num lindo lugar mesmo que não seja aquele ao qual pretendesse navegar, então posso quebrar o espaguete antes de cozinhar, perceber nas palavras do médico que ele é apenas um estímulo para o diagnóstico que a Verdade haverá de me revelar, na minha íntima e total ciência sobre o meu corpo e seus defeitos ocasionais e geniais, e que talvez haja de fato algum valor no universo, ou entre as fibras de suas entranhas… ah, Mãe, ainda te decifrarei… uma pureza ENTRE O SIM E O NÃO, pelo jorro sereno e desintencionado da Percepção. .
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