Nos estudos de comparações entre produções literárias contemporâneas, o pesquisador Antonio Rediver Guizzo deparou-se com um ponto que lhe chamou a atenção: as narrativas distópicas que, segundo ele, “trazem contextos de certa forma apartados da realidade, mas que tem muitos pontos de contato com a nossa realidade material, com a nossa vivência cotidiana”. Para explicar distopia, o professor fala primeiro sobre o conceito de ficção, compreendida como algo que se impõe como um desejo do autor de representar algum tema em uma determinada narrativa.
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Nessa fronteira cada vez mais permeada entre realidade e ficção, ele diz que, na literatura, é comum o aparecimento da autoficção (quando o autor mescla eventos da sua própria vida com eventos históricos e outros totalmente ficcionais). Nas narrativas audiovisuais, Guizzo aponta que isso está presente em documentários ou filmes em que mesclam a ideia de realidade e ficção sem a preocupação de discernir para o espectador se o que ele está vendo é real ou não. Por outro lado, ele aponta que a intenção do autor pode ser a de produzir uma obra que sirva de reflexão para o tempo atual, seja como em “Eram os deuses astronautas?” (1970) ou o mais recente “Não olhe para cima” (2021).
Sobre esse filme mais recente, e que vem registrando grande audiência, Antonio Guizzo aponta que ela traz vários elementos que não seriam possíveis transformar em ficção se a obra fosse produzida há alguns anos, justificando que ela só existe dentro da materialidade histórica do momento atual. “É como se essas obras fizessem um pacto com o leitor, para ele não ficar preocupado se tal circunstância é ou não verdade, se poderia ou não ser possível, mas sim olhar e procurar entender aqueles fatos apresentados dentro do nosso contexto e que aquilo sirva de um ponto de reflexão crítica para a gente trazer outra percepção da nossa própria realidade”, explica ele. .
Guizzo aponta que os termos distopia ou ficção distópica geralmente são colocados dentro de uma perspectiva contraposta ao que seria a utopia. “Enquanto a distopia seria a narrativa de um mundo caótico, a utopia seria a narrativa de um mundo perfeito; a diferença entre uma utopia e uma distopia é o ponto narrativo”, aponta ele. Isso porque a visão de mundo caótico contada pelo narrador seria tudo o que ele acha de terrível no mundo, da mesma forma como se fosse caracterizar o mundo perfeito, utópico, esse também não se encaixaria na perspectiva de todos. Por isso, ele aponta que a vida no campo, marcada pela percepção de comunidade e solidariedade entre as pessoas poderia parecer horrível para quem gosta de cidade grande, com vida mais agitada, por exemplo.
“O ponto principal da distopia, que difere da utopia, é mostrar como funcionam os mecanismos de controle, de imposição de uma suposta vida perfeita. Porque todo mundo distópico, principalmente quando se trata de distopias políticas, é apresentado por um personagem que não concorda com aquela vida perfeita que ali tentaram construir. E ele vai mostrando como a imposição dessa vida perfeita só é possível através de vários mecanismos de controle violentos”, explica Antonio.
Algumas obras clássicas como “Admirável mundo novo” (1932), “1984” (1949), “Farenheit 451” (1953) são conhecidas como as distopias clássicas do mundo moderno e os estudiosos de literatura consideram-nas as grandes influenciadoras de toda a literatura distópica que surgiu depois. “Elas têm um ponto de contato muito forte a exploração da construção de regimes totalitários e como os mecanismos de controle violentos são necessários para impor determinada forma de mundo”, diz.
Já “O Conto da Aia” (1985) e “Ensaio sobre a cegueira” (1995) são caracterizadas como obras mais contemporâneas. “Com a ascensão da extrema direita na política no contexto global, voltam-se a ser escritas distopias que trazem um contexto político mais global também. Na evolução das distopias, passamos para obras que trazem contexto político global para obras que trazem uma discussão mais circunscrita e, agora, volta ao regresso de obras que trazem uma discussão mais global, também, das circunstâncias políticas”, define. .
Guizzo: “Os momentos históricos que a gente vive são catalisadores e um bom fermento para a literatura” (Imagem: reprodução Youtube)
Questionando por que a humanidade parece ter o fascínio pelo fim do mundo, o pesquisador acredita que não se trata de fascínio, mas sim de medo. “A reprodução dessas obras está relacionada com a ideia de que nós somos, talvez, a única espécie consciente da inexorabilidade do nosso fim, de que estamos aqui de passagem, de que vamos, inevitavelmente, morrer, acabar enquanto espécie”, explica. Ele imagina que as narrativas apocalípticas seriam uma forma de lidar com o medo do fim; assim, elas sempre vão trazer um interesse para o leitor e continuarão a instigar os escritores a reescrever esse tipo de narrativa.
E sobre a possibilidade de que as dificuldades da vida das pessoas impulsionariam a produção desse tipo de literatura, Guizzo defende que boas produções literárias sempre são fruto de momentos de crise, seja pessoal, existencial, ou social: “A boa literatura é sempre o questionamento de algo que não está certo para o seu autor, que produz questionamento de alguma injustiça, de algum drama, de um mundo no qual ele não se sente pertencente”, diz ele, reconhecendo que, muitas vezes, as obras apenas apresentem problemas e deixam o final em aberto para que os leitores busquem as respostas.
“Os momentos históricos que a gente vive são catalisadores e um bom fermento para a literatura”, diz o pesquisador, lembrando que outra pandemia global já fora descrita por autores de outras épocas como em “A peste” (1947), e que experiências atuais vêm sendo novamente descritas por autores que trazem à tona a situação vivenciada em diferentes perspectivas, como ocorre com a obra vencedora do Prêmio Jabuti, “Corpos Secos”, além de “Deus das Avencas” e “A extinção das abelhas”, todas lançadas em 2021. “Houve um grande interesse do público por esse tipo de literatura, mas, também, dos escritores e acadêmicos em produzir obras que discutissem sobre os riscos à democracia e o nosso momento histórico, que é a pandemia”, diz Guizzo.
No encerramento da entrevista, Antonio Guizzo apresenta uma lista de indicações para quem gosta desse tipo de literatura, incluindo as obras “Não me abandone jamais” (2005), que traz, num contexto distópico, uma sociedade em que alguns humanos são criados com a única finalidade de servirem para transplante para outras pessoas, e elas aceitam essa condição. É uma crítica à aceitação de uma realidade, tentando instigar os leitores que, apesar de todas as adversidades, não podemos ser pessimistas nem aceitar o que acontece sem nenhuma luta contra o sistema opressor. Considero uma das melhores obras que eu li na vida”.
Outra indicação é “Cadáver exquisito” (2021), romance argentino que trata de humanos que são colocados dentro de uma linha de produção de proteína para consumo de outros humanos. “Esse filme traz um choque para a gente, principalmente para os que consomem carne diariamente”, finaliza.
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