Um mecânico trabalhando em uma bomba a vapor de uma termoelétrica (foto de Lewis Hine, 1920).
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Os intelectuais poderiam ser considerados “porta-vozes dos pobres”? Com essa provocação, Martin Lienhard, professor da Universidade de Zurich (Suíça) iniciou sua conferência de abertura do “Seminário Internacional Conhecimentos Compartilhados: Tradição e Modernidade” no dia 01 de abril de 2013 no Memorial da América Latina em São Paulo. Um dos objetivos principais do seminário foi promover um espaço de discussão e de diálogo sobre a produção e circulação de conhecimentos na sociedade contemporânea. Nesse contexto, Lienhard trouxe para discussão a complexidade dos embates gerados pelas posições assumidas pelo “intelectual” e pelo “subalterno” em contextos de produção de conhecimento, especialmente nos campos da antropologia e da etnologia.
O uso da palavra “subalterno” por Lienhard não deixa de causar certo desconforto, mas o simples fato de ele lamentar ter de usar esse termo já nos mostra seu posicionamento político que possibilita uma abordagem crítica da estratificação social em que estamos confinados no sistema capitalista, que produz e reforça as desigualdades. Enquanto o subalterno não possui o direito de reconhecimento de sua voz – ou tem sua voz silenciada –, o intelectual tem sua voz quase incondicionalmente legitimada.
O que dizer, então, da relação entre essas duas posições em contextos de produção de conhecimento? Que conflitos e contradições surgem dessa relação? Lienhard nos ajuda a pensar sobre essa questão a partir de exemplos de intelectuais que, desde o século XIX, têm utilizado relatos orais e testemunhos populares de subalternos (imigrantes, ex-escravos, indígenas) em suas pesquisas de cunho etnológico e antropológico. Problematizando a forma como esses depoimentos foram produzidos, Lienhard conseguiu mostrar como, muitas vezes, os intelectuais apenas “sequestram o discurso dos subalternos”, ou seja, apropriam-se desse discurso para transformá-lo em seu “objeto”, correndo o risco de reforçar ainda mais as relações hierárquicas estabelecidas pela produção dos saberes na sociedade.
Um dos exemplos mais marcantes trazidos por Lienhard para ilustrar essa relação desigual entre o intelectual e o subalterno é o filme Santiago (2007) de João Moreira Salles. Nesse filme, Salles realiza um trabalho autocrítico sobre a elaboração do material bruto gravado em 1992 para a produção de um documentário sobre Santiago Badariotti Merlo (1912-1994), que havia sido mordomo da família Salles por 30 anos e que se destacava por duas características singulares: sua memória e sua sensibilidade. A retomada das gravações em 2005 fez com que Salles enxergasse que o modo como ele conduzia Santiago em seus relatos e em suas atitudes diante da câmera acabou colocando entre eles uma barreira intransponível. Nos minutos finais do filme, o personagem-diretor analisa: “Ao longo da edição, entendi o que agora parece evidente: a maneira como conduzia as entrevistas me afastou dele. Desde o início, havia uma ambiguidade insuperável entre nós, o que explica o desconforto de Santiago. É que ele não era apenas meu personagem; eu não era apenas um documentarista. Durante os cinco dias de filmagem eu nunca deixei de ser o filho do dono da casa e ele nunca deixou de ser o nosso mordomo. E no fim, quando Santiago tentou me falar do que lhe era mais íntimo, eu não liguei a câmera”. Ao longo do filme todo, percebemos que Salles procurou mostrar o quanto seu posicionamento de “intelectual” – documentarista “dono” da palavra, no caso – acabou configurando um lugar de inferioridade – muitas vezes, um lugar de silenciamento – para a voz de Santiago.
Assim como temos nesse exemplo a explicitação dos processos de subjetivação em que os indivíduos se tornam sujeitos cujas identidades estão atreladas a estratos sociais (“filho do dono da casa”/”documentarista” x “mordomo”/”personagem”), podemos pensar em outras categorizações discursivas que se tornam estereótipos que (des)autorizam ao sujeito o poder da palavra. E, se pensarmos em nossa história de colonização, essas categorizações se tornam ainda mais complexas, pois são o resultado de um processo histórico de “violência epistêmica”, termo utilizado pela pesquisadora indiana Gayatri Spivak para designar o sistema de desigualdade e dominação que proíbe (ou dificulta) que a palavra dos subalternos obtenha visibilidade e peso em termos ideológicos e políticos.
O linguista australiano Alastair Pennycook utilizou-se da noção de “violência epistêmica” para abordar o processo histórico envolvendo os regimes metadiscursivos construídos para descrever as línguas das diversas civilizações colonizadas pelos europeus. Nessa perspectiva, a própria separação das línguas em sistemas únicos deve ser questionada, pois constituiriam “invenções” criadas para homogeneizar o imaginário social em torno dos ideais preconizados pelo modelo europeu de Estado-Nação vigente.
Em uma entrevista cedida recentemente à Revista de História (Edição nº 91/Abril 2013), o escritor Daniel Munduruku problematiza a homogeneização das identidades indígenas em sua fixação num imaginário que funciona a partir do conceito “índio”, já cristalizado em nossa sociedade. Assim, o sujeito coletivo (“indígena, no caso) não se reconhece na narrativa ocidental da história, pautada num ideal de nacionalidade; tampouco se reconhece nos discursos acadêmicos, em que não é reconhecido como portador de um discurso de conhecimento. Nas palavras de Lienhard, esse sujeito “só tem uma quoted existence: só existe na medida em que sua fala é citada ou situada pelo discurso de um antropólogo ou historiador”.
Que posição o intelectual deveria buscar então para não cair nas armadilhas ideológicas de suas próprias invenções históricas em seu processo de produção de conhecimento? Ora, o papel do intelectual não é o de ser “porta-voz” das minorias, mas sim o de participar ativamente da vida e da luta política a partir das quais se constroem suas identidades.
Foi nessa direção que Paulo Freire partiu em busca de uma educação para a autonomia e para a viabilização da mobilidade social por meio do empoderamento dos subalternos a partir de sentidos construídos em seu próprio mundo. Foi esse também o percurso traçado por Antonio Candido em seu tratamento político-estético do texto literário, procurando sempre promover reflexões e ações em defesa do acesso igualitário da sociedade à literatura, ou seja, a literatura como direito de todos. Por fim, também seguindo os caminhos de uma intelectualidade engajada, Michel Foucault trouxe à tona discussões sobre as relações de poder produzidas na/pela sociedade em seu processo de produção de sujeitos (subjetivação), assumindo, em suas reflexões e ações, uma posição de militância, levantando sempre a bandeira da ética como um caminho possível para a resistência.
Busquemos inspiração nesses intelectuais engajados cujos posicionamentos políticos constituem exemplos de um exercício constante de reinvenção desses lugares construídos ideológica e historicamente.
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