.
Lanterna na mão, Centurião aos 102 anos não falta às aulas nem se estiver chovendo. ” – Foto: Guatafoz / Denise Paro
Reportagem de Denise Paro, texto e fotos, especial para Guatá Foz
O líder guarani vivenciou muitas lutas no decorrer da vida, uma delas para garantir o direito da terra própria. Quando criança aprendeu a plantar, andar de bicicleta, jogar bola. Mas algo importante ficou para trás. Como tinha que trabalhar, Centurião não pode conhecer o significado das letras, das palavras. Só sabia mesmo assinar o nome. Foi por isso que hoje, aos 102 anos, ele resolveu estudar.
“O que a gente mais gosta de aprender é matemática para não ser enganado” (João Tupã Centurião)
. João tornou-se aluno da Escola Indígena Teko Ñemoingo que fica na comunidade avá-guarani. Ele está matriculado na turma do curso Eja (Educação de Jovens e Adultos). Na sala de aula, ocupa a primeira carteira e sempre está atento à explicação da professora Rosane Takua Nemandeavy Martines Rocha, 28 anos. “Ele é um orgulho de aluno”, diz. A professora conta que Centurião não falta às aulas nem se estiver chovendo.
30 alunos frequentam o EJA em diferentes séries, na escola da comunidade. Um dos colegas mais velhos de Centurião tem 81 anos. A mais nova 57. – Fotos: Guatafoz / Denise Paro
O aluno longevo resolveu estudar em plena pandemia, em 2021. Pouco mais de um ano foram suficientes para ele pegar o gosto pelas letras e números. O que mais quer, diz, é aprender matemática para fazer as contas na hora de comprar no mercado. “Estou indo lá para aprender alguma coisa”, diz em tom de modéstia.
Centurião recebe uma atenção especial da professora. Por ter problemas de visão e audição em razão da idade avançada, ele tem um atendimento diferenciado em sala de aula. A presença dele em sala de aula faz diferença. Por saber muito sobre a história da comunidade, o aluno sempre é consultado em sala de aula quando o assunto são os Guarani. “É querido por todo mundo”, diz a professora.
Festa de aniversário de Centurião, em setembro, numa das pausas da turma multiseriada do EJA – Educação de Jovens e Adultos. Abaixo, o cotidiano do aluno centenário a caminho da matemática e da escrita (Fotos: Guatafoz / Denise Paro)
. Na escola situada na comunidade e administrada pelo governo do estado pelo menos 30 alunos frequentam o EJA em diferentes séries. Um dos colegas mais velhos de Centurião tem 81 anos. A mais nova 57. Eles estudam ciências da natureza, história, geografia, português, matemática e a língua materna, o guarani.
Todos os dias, antes do sol de pôr, João Centurião se prepara para ir à escola. Ele anda pouco mais de 100 metros para pegar o ônibus escolar. Sempre com uma lanterna à mão para iluminar o caminho de volta. Quando tem disposição, faz o percurso de bicicleta.
Estou indo lá para aprender alguma coisa”, diz João em tom de modéstia. .
Na década de 1970, João Centurião fazia parte das últimas famílias que precisaram deixar a terra de Jacutinga para procurar outra moradia. Em um primeiro momento ele foi morar no Paraguai. Tempos depois, foi convidado por parentes para retornar ao Brasil e viver na comunidade Tekoha Ocoy, de onde não saiu mais. A reserva do Ocoy tem 231 hectares e lá moram 952 pessoas.
Lanterna à mão, Centurião aos domingo ilumina conversas animadas com os saberes de seu povo Avá Guarani – Foto: Guatafoz / Denise Paro
No histórico de vida, Centurião enfrentou a violência provocada pela disputada de terras na região, povoada por pistoleiros. Entre 1984-1988 assumiu o posto de cacique e liderou a comunidade para a demarcação de terras indígenas.
Viúvo, João mora sozinha. Os filhos já se emanciparam. A filha mais velha tem 62 anos; a mais nova 21. No terreno de casa, ele planta milho, mandioca e cria os frangos caipira que fazem parte das refeições. Por vezes acompanha partidas de futebol no campinho que fica próximo a casa dele.
Aos domingos, costuma receber visitas que ficam por horas em torno dele ouvindo histórias e conselhos. Apesar de só agora estar indo à escola, João tem muito a ensinar.
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.