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Ilustração: Naine Terena
Numa pequenina aldeia nasceu Pino, um menino que desde miúdo revelou uma natureza especial e um bom coração.
Pino cresceu com talento criativo, disposto sempre a ajudar a mãe nos afazeres domésticos. A sua atividade mais costumeira era apanhar lenha — na mata, podia treinar a pontaria, por horas a fio, para flechar passarinho em pleno voo. Tanto por lá se demorava que sempre levava um puxão de orelha da irmã mais velha. E prometia, só de boca, não fazer mais isso, porque aquele era o seu esporte preferido. Tornar-se um arqueiro de precisão era o seu grande objetivo. Por isso, também costumava ir ao rio para flechar os peixinhos.
O tempo passou e o jovem Pino adquiriu plena noção da cultura do povo Kurâ. Entre as muitas narrativas tradicionais que conheceu, a que mais o marcou foi a história de uma temível onça da região.
Certo dia, desejou saber mais sobre ela:
– Mãe, por que todos têm tanto medo dessa onça? E onde ela vive?
– Filho, não se meta com a onça. Até mesmo nós, que somos da família, evitamos ir à casa da sua irmã.
– Minha irmã? – Pino foi pego de surpresa – Mas o que ela tem a ver com isso?
E a mãe explicou:
– Você tem uma irmã que é casada com a onça. Nós não a vemos há muito tempo. O seu cunhado é nosso inimigo, ataca as pessoas sorrateiramente. Muito cuidado ao perambular sozinho, meu filho. Dizem que a onça fica à espreita, observando e aguardando um momento de distração para atacar. Por favor, não vá muito longe nas suas andanças!
Após a conversa com a mãe, Pino passou a noite matutando. Poderia mesmo se apresentar, mesmo sabendo da sua índole e habilidade, sem que o cunhado reagisse? Queria mesmo fazer uma visita à casa da irmã, e duvidava que seria atacado diante dela.
Antes de tudo, foi preciso se preparar física e espiritualmente. Pediu ao avô que confeccionasse boas flechas, um arco potente de madeira e cordas bem resistentes. Todos os dias, lá na floresta, praticou escalada. Na árvore mais alta, subiu e desceu até cansar. Algumas vezes, quando alcançava a copa, trocava de árvore. Com o mesmo empenho, foi ao rio nadar e mergulhar por longas horas, para ganhar resistência e fôlego. Com os pais e avós aprendeu a se benzer e a agradecer aos elementos da natureza para enfrentar os desafios.
Enfim, o momento chegou. Pino anunciou aos pais:
– Amanhã, saio cedo. Vou visitar e me hospedar na casa da minha irmã.
A mãe e o pai olharam para ele com compaixão.
– Você tem certeza, Pino? – perguntou o pai. – Quer mesmo enfrentar uma onça que mete medo em tanta gente?
E a mãe emendou:
– Nós admiramos a sua coragem, meu filho. Mas você é muito jovem. E eu não quero te perder.
– Fique tranquila minha mãe. Vou à casa da minha irmã e do meu cunhado com espírito de paz. Nada de afronta, só quero conhecê-los pessoalmente.
Diante da confirmação, sua mãe se aproximou:
– Pino, para muito além do nosso mundo, há perigos de todo tipo. Você precisa estar sempre atento por onde for, está bem? Seja cuidadoso com seu corpo e com a sua alma.
Quando o sol clareou no horizonte, Pino já tinha preparado a bagagem. Benzeu o corpo e partiu. Seguiu à risca a rota e as orientações transmitidas pelo pai, para que chegasse bem ao seu destino. Toda vez que reconheceu um lugar, conforme as suas dicas, deixou uma flecha cravada em uma árvore, para indicar o caminho de volta.
Quando a tarde começou a cair, apressou-se em escolher uma árvore imponente, para lá em cima armar a sua rede. De madrugada, Pino acordou e cantarolou algumas músicas de agradecimento pela noite tranquila e por aquele momento de vida.
Pela manhã, Pino subiu até a copa, de onde se maravilhou com a beleza e a imensidão da paisagem. Em meio às árvores, avistou uma fumacinha ascendente, que logo reconheceu como um sinal de presença humana.
Animado, Pino certificou-se de que estava na direção certa. E calculou
que chegaria até antes do previsto à aldeia da irmã.
Ao completar o percurso, já naquela aldeia tão pequena quanto a sua, perguntou ao primeiro morador que encontrou onde ficava a casa da sua irmã. E para lá se dirigiu. A irmã o reconheceu de imediato. E também o acolheu muito bem. Quando teve oportunidade, é claro, perguntou sobre o cunhado. Ela lhe respondeu que ele tinha saído cedo para caçar, mas que estaria de volta antes de anoitecer. Restou ansiedade e curiosidade.
O cunhado chegou bastante carregado. E jogou toda caça bem perto da
rede do Pino. Diante disso, a esposa comentou:
– Cuidado, bem ali está o meu irmão, que veio nos visitar.
E o marido se desculpou, com áspera ironia:
– Ah! Eu não sabia que tinha visita. Pode ficar tranquilo, meu cunhado,
continue a descansar na sua rede.
Pelo comentário, Pino percebeu que o cunhado não estava muito contente com a visita. Num dado momento, levantou-se e foi lá para fora. Quando retornou, trouxe dois vagalumes, que manteve na sua rede. Quando o sono chegou, o jovem kurâ ajeitou os insetos sobre as pálpebras e adormeceu. Durante a noite, o cunhado levantou-se para conferir se o Pino estava dormindo. Assim fez inúmeras vezes, mas sempre dava com aqueles olhos brilhantes incansáveis.
Houve um momento em que Pino acordou e sentiu acima de rede o olhar felino do cunhado:
– Você está sem sono, cunhado?
E ele respondeu:
– Não, meu cunhado. Eu apenas zelo por você. Quero que durma bem.
De manhãzinha, Pino se espreguiçou:
– Nossa, como é bom dormir na casa dos parentes! Esta noite foi muito boa…
O cunhado ficou uma fera quando viu o jovem tirar os insetos das pálpebras. Ele tinha sido enganado pelo brilho dos vagalumes. “Que disgrama, eu podia tê-lo devorado!”, pensou a onça.
No dia seguinte, conforme programado, Pino arrumou sua bagagem: a rede de dormir, arco, flechas e outras coisas. O cunhado ficou de olho na sua movimentação. Mas Pino, fingindo não perceber o olhar furtivo da onça, agradeceu a hospedagem, anunciou sua partida e se despediu do casal.
Seguiu pela mesma trilha da chegada, atento às flechas, caminhando sereno por um longo tempo. Porém, à certa altura, o jovem kurâ percebeu que não caminhava só. Lembrou-se do rio mais adiante e decidiu apertar o passo. Quando finalmente chegou às margens, rapidamente descarregou os pertences. Mas o cunhado logo pulou na sua frente, obrigando Pino a declarar:
– Que bom que você veio me acompanhar! Muito obrigado!
– Foi a sua irmã que pediu para eu te acompanhar.
– Você não veio me acompanhar, meu cunhado. Veio é me intimar. Quem cruza contigo pelo caminho, não costuma voltar para casa. Mas não é o meu caso, não tenho medo de você.
O cunhado, enfurecido pela ousadia do rapaz, avançou. E eles lutaram violentamente. Quando Pino percebeu que já não tinha mais forças, cravou seu punhal feito de osso no coração da onça. E depois se benzeu.
Daquele dia em diante, nunca mais animal algum submeteu os humanos. Nem mesmo as onças. E, nós, ficamos com o compromisso de preservar todas as espécies da natureza.
FIM
Darlene Yaminalo Taukane, é natural da aldeia Pakuera, do território da Terra Indígena Bakairi do Município de Paranatinga-MT, da etnia Kurâ Bakairi.
Estudou na escola da aldeia até os quinze anos e, quando completou dezessete, foi estudar no Colégio Internato Congregações das Irmãs Franciscanas. Estudou no Colégio Coração de Jesus em Rondonópolis, no Mato Grosso, para cursar magistério (1982 – 1984).
Entre 1989 e 1992, para prestar vestibular e cursar o ensino superior, foi morar em Cuiabá-MT. Cursou Licenciatura Plena em Letras, pela Universidade de Cuiabá (UNIC). No período de 1994 a 1996, fez pós-graduação em Educação.
Naine Terena de Jesus
é mestre em artes, doutora em educação, graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Mulher do povo Terena, é pesquisadora, professora universitária, curadora e artista-educadora. Desde 2012 movimenta um empreendimento cultural chamado Oráculo Comunicação, Educação e Cultura que fomenta a participação ativa de minorias no mercado sociocultural. É organizadora da coletânea de escritores indígenas Tempos (Ed. Sustentável, 2021). Naine foi uma das cinco finalistas do Jane Lombard Prize for Art and Social Justice, oferecido em 2019, pela Vera List Center for Art and Politics, de Nova York (EUA).
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