Pintura de Giane Lessa – Reprodução
Quando setembro chegar, os trigais não serão mais telas, apenas belas telas de um pintor celestial, sonetos jogados ao mar,
Mas os trigais, símbolos do plantio e da fartura, estarão vivos às palmas das mãos, poderemos acariciá-los como aos nossos sonhos, estarão vivos com suas melenas douradas, as crinas rebeldes dos dias a soluçar ao vento, vivos assim como canções e orações, vivos assim como o passado e o futuro, vivos nesse viver que será sempre setembro.
Nesse pedaço de tempo haveremos de atear pétalas quaisquer e plantar um sol com gosto de manga um girassol maluco à espera de um calendário que não vai terminar, que só secará quando não pudermos mais enxergar o infinito e nem tê-lo às palmas das mãos.
Quando setembro chegar, os dias virão cheirosos em jasmim e alfazema, em camomila e rosa, em cabeleiras de ipês, em braços de araucárias.
Quando setembro chegar, a primavera virá despenteada notícia boa em manhã de chuva e vamos parar o mundo, parar os mistérios, parar os negócios, parar os dias, parar as horas, os minutos, os segundos, vamos ficar em silêncio, no mais fundo silêncio, no mais agudo silêncio.
Quando setembro chegar, estaremos para ver, para sentir: azaléias abrindo-se, rubras, feito mocinhas ameixas, boêmias, amanhecendo douradas coleirinhas, fogosas, ensaiando versos em canto rápido e esguio, voando como peixes betas azuis, briguentos e sensuais, canários belgas, apaixonados, arrepiando as penas em belicoso cio, sabiás, em farra, tingindo a manhã de cobre enquanto João e sua noiva cobrem de barro uma nova casa em canto estridente que anuncia a benção da vida
Setembro, bem-te-vi, eu bem-te-vi chegar um setembro diferente, tempo que não é um tempo qualquer, mês que ficará grudado na folhinha da parede, um setembro escrito em letras miúdas, tortas, adolescentes, caligrafia tremida de emoção, um setembro moldado em juras candentes em escola qualquer, desafiador como os berros das maritacas, uma arquitetura de riscos que misturam cacos, pedaços e sonhos, cantos de pássaros e lume da lua, gosto de kiwi, de pêssegos e de gente, fiapos de sol.
Sabemos, setembro, mas é um segredo a dois, segredo que dispensa gestos labiais, segredo que os outros só vão entender quando lembrarem desse momento quando celebrarem este setembro. Um segredo para saber, amada, um segredo para saber, amado, que temos cicatrizes doces da infância, delícias de nossos sorrisos, lágrimas de nossas frustrações, que temos o dia para ser feito a cada uma das manhãs, regar as plantas, lavar as calçadas, cozinhar o alimento, beber o vinho, celebrar o nascer e novas vidas, que temos o eterno dia para escrever, ler e de novo escrever, com letras informatizadas ou no alfabeto chinês ou em hieróglifo ou em silêncio, segundo a segundo, desafio a desafio, cada um de nossos momentos apalavrados em brasa que arde de seres brotando paixão, cada um de nossos signos enlaçados em sexo que arde de corpos no mesmo espaço.
É um setembro no qual nos juramos reagir sem engolir discordar sem ferir argumentar sem calar construir sem destruir disputar sem transgredir evoluir sem infelicitar viver sem matar.
É um setembro no qual nos prometemos uma flor a abrir a cada momento um temor a cada ameaça um tremor a cada ardor uma força a cada fraqueza um gesto a cada necessidade uma esperança a cada derrota um sol a cada borrasca uma alegria a cada dor um sussurro a cada descaso uma lembrança a cada esquecimento um carinho a cada aspereza uma música a cada mutismo um destino a cada perda uma infância a cada vetusto um ângulo a cada reta uma gargalhada a cada sisudez um beijo a cada tapa uma prece a cada desrespeito um reencontro a cada saudade uma fartura a cada fome um sim a cada não uma bússola a cada desatino um conforto a cada lágrima uma flor a abrir a cada momento até que o pólen seque nas tintas dos trigais e eles se transformem em apenas uma tela, não uma tela qualquer, mas uma tela mágica plena de sonhos, plena de vida, loucamente inspiradora aos filhos que virão, aos netos que virão, a todos que a verão.
É um setembro que merecemos.
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