Em seus primórdios, o cinema sempre esteve conectado de alguma maneira com formas de arte mais antigas e consolidadas, como a literatura e o teatro. A própria linguagem cinematográfica também era limitada à época de seu surgimento. Com o tempo, o cinema foi evoluindo. Surgiram novas técnicas de edição, de fotografia, de efeitos especiais. Além disso, novos modos de se compreender esta arte tão jovem também começaram a aparecer nas inúmeras mentes empolgadas e inquietas de admiradores e profissionais. A sétima arte evoluiu de forma extremamente rápida, espalhando-se pelo mundo em questão de poucos anos. Muito disso se dava à universalidade dos filmes mudos. Porém, até o fato de o inter título ter que ser traduzido acabava por limitar o cinema. Dentro de todo esse contexto histórico do processo de evolução do cinema, surgiu um filme que buscava contornar e acabar com todas essas limitações. Em 1929, o cineasta soviético Dziga Vertov, que trabalhava para o governo e era um dos preferidos de Lenin, realizou um dos filmes mais ambiciosos e influentes de toda a história do cinema. “Um Homem Com Uma Câmera” (Chelovek s kino-apparatom, 1929) tinha um objetivo claro (que, inclusive, é relatado por meio de texto logo no começo da projeção): ser o primeiro filme integralmente idealizado e realizado com abordagem puramente cinematográfica, se desvencilhando da literatura e do teatro de uma vez por todas e, enfim, criando o cinema puro. O filme não teria roteiro. Nem atores profissionais, pois não existem falas, o que torna o filme realmente universal.
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A premissa é simples. Um homem, munido de sua câmera, sai pelas ruas de algumas cidades (Moscou, Kiev e Odessa) documentando a vida das pessoas, englobando diversos aspectos e particularidades da vida urbana e da modernidade. Durante 68 minutos, Vertov nos proporciona um verdadeiro espetáculo visual. Trens, relógios, pessoas, carros, ruas, máquinas, indústrias. Tudo isso é jogado na tela de forma sofisticada e organizada. A montagem do filme é brilhante. Contemporâneo de Eisenstein, Vertov entendia o poder que a edição das imagens proporciona para o resultado final. Pioneiro da superposição de quadros, o cineasta utilizou as mais variadas técnicas cinematográficas a sua disposição, incluindo também jump cuts e telas divididas. A velocidade dos cortes, em determinados momentos, busca evidenciar o próprio aspecto temporal presente na sociedade contemporânea. Cortes rápidos entre operários e a atividade de trabalho que realizam mostram o ritmo alucinado que a vida das pessoas tomou. Ora, se o cinema é a arte do século XX, nada mais apropriado que relatasse e refletisse sobre as peculiaridades de seu próprio tempo. E o que mais está presente no filme, que não apenas imagens? Música. A trilha sonora de Um Homem Com Uma Câmera é tão importante para a experiência quanto às imagens. As composições foram criadas e conduzidas pela Alloy Oschestra, e foram compostas a partir de instruções do próprio Vertov. A música é fundamental para a delimitação dos diversos momentos do filme. É tranquila em cenas que envolvem bebês, e é agitada nos momentos que retratam o trabalho dos operários, por exemplo. A cena final atinge um nível de emoção impressionante, se comparada com o que se via normalmente na época, e muito desse poder se dá pela potente combinação entre música e edição. O filme de Vertov também é de suma importância para a história dos documentários. Seu uso de câmeras móveis e livres, além do fiel retrato da realidade, foi fundamental no desenvolvimento da concepção de documentários que reside na mente das pessoas até hoje. É importante destacar que, durante os anos 20, na União Soviética, o cinema era controlado pelo estado, e tinha a finalidade de reforçar e difundir os ideais da ideologia socialista. Porém, durante essa década, os jovens cineastas do país ainda gozavam de liberdade para criarem e inovarem. Foi nesse período que gênios como Eisenstein e o próprio Vertov surgiram. Com o passar do tempo, a liberdade que os diretores tinham foi sendo perdida, até ser praticamente destruída com a chegada de Stalin ao poder. Contudo, a década de 20, na União Soviética, continua sendo uma das mais importantes da história do cinema, com legado de inúmeros avanços técnicos e intelectuais. Foi com a liberdade dessa época que Vertov conseguiu realizar seu ambicioso projeto. “Um Homem Com Uma Câmera” é melancólico em alguns momentos, psicodélico em mais alguns, radical em outros. É uma verdadeira sinfonia do cotidiano, repleta de imagens aparentemente ordinárias, mas que, colocadas sob a lente de Vertov, tornam-se verdadeiros poemas. O filme é reverenciado e estudado até hoje, tendo sido eleito, em 2012, como o oitavo maior de todos os tempos, na conceituada eleição da revista britânica Sight & Sound. ________________________ Luiz Eduardo Luz, publicitário, amante da sétima arte e colecionador de filmes, escreve sobre cinema. Texto reproduzido do site Canto Dos Clássicos.
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