Palestra de Olivio Jekupé para alunos no CEU Parelheiros, em São Paulo – Foto: Sec de Educação de SP
Por Isabelle Rieger / Nonada Anelise Cataldo é professora dos anos finais na Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental Arasaty, em Guaíba (RS). Ela é branca e teve seu primeiro contato com a educação indígena ao prestar concurso para este cargo de docente. Quando prepara as aulas, tem vergonha de usar os materiais didáticos disponíveis, pois o que está escrito sobre os povos indígenas é recheado de estereótipos. “Os materiais sobre a história dos povos originários ainda são muito carregados de preconceitos, de confusões, do olhar do branco sobre eles”, sinaliza. Assim, ela busca fontes alternativas, como sites educativos da internet, conversas com outros professores e pesquisas bibliográficas em outros livros.
Em 2008, foi regulamentada a Lei nº 11.645, que determina a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena em todo o ensino fundamental e médio, em todo o currículo escolar. Ela complementa a Lei nº 10.639, sancionada em 2003, que determinou a inclusão da história afro-brasileira nos currículos escolares, mas não citava as culturas indígenas. Os conteúdos ministrados pelos professores, então, tiveram que mudar para se adequar à inclusão dos povos originários no ensino.
“O objetivo da Lei nº 10.639 é promover uma educação antirracista e promover participação ativa de homens e mulheres negros e indígenas na nossa formação enquanto nação”, explica Wilma Coelho Diretora de Políticas de Educação Étnico-Racial e Educação Escolar Quilombola da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão), do Ministério da Educação (MEC), em reunião da Comissão da Educação da Câmara dos Deputados, em novembro. No entanto, somente 29% das prefeituras, responsáveis pela manutenção do Ensino Fundamental e da Educação Infantil, oferecem de forma satisfatória a temática racial na programação escolar, conforme levantamento dos institutos Geledés e Alana.
Não há levantamento semelhante para a lei que inclui especificamente os povos indígenas. “A gente ainda fala de forma estereotipada sobre os povos originários nos livros de escolas, como em comemorações do ‘dia do índio’, por exemplo”, reclama a pesquisadora em Educação e doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Luciana Dornelles. “É dever do Estado fornecer materiais adequados e fiscalizar o que está sendo feito”, complementa.
Olivio Jekupé, escritor guarani – Foto: divulgação
Olivio Jekupé é escritor há mais de 20 anos, com títulos como “O Saci Verdadeiro” (2000) e “Literatura Nativa em Família” (2020). Ele oferece palestras em São Paulo, no Paraná e em outros estados do país para conversar sobre a cultura dos povos indígenas. Olívio é da etnia guarani e é morador da aldeia Kakané Porã, em Curitiba (PR). Ele conta que o contato para dar as palestras vêm do Sesc, de professores, diretores de colégios, principalmente de escolas privadas. Ou seja, iniciativas individuais de espaços culturais ou do próprio corpo docente, que ajudam a preencher lacunas das atividades de ensino e dos materiais didáticos.
Essas lacunas são conhecidas há algum tempo pelas instâncias do governo brasileiro. Em parecer publicado em 2016, o Conselho Nacional da Educação (CNE) já reconhecia as deficiências na aplicação da Lei nº 11.645/2008. “Em alguns casos, as ações realizadas nesse campo são feitas sem a devida orientação antropológica, linguística ou histórica, provocando a reprodução de estereótipos e preconceitos tradicionalmente utilizados contra os povos indígenas”, diz o documento, apontando que uma demanda proposta pelos movimento indígena é que “os indígenas assumam o protagonismo de falar sobre suas histórias e culturas. Nesse sentido, os sistemas de ensino devem fomentar a publicação de materiais didáticos e sobre a temática de autores indígenas”, avalia o Conselho.
Para Olivio, se o poder público comprasse os livros produzidos por pessoas indígenas de etnias diferentes e pensasse nas complexidades de cada estado, o conhecimento da cultura indígena aumentaria. “Às vezes compram livros de somente um escritor indígena, o que dificulta o trabalho sobre a questão indígena. Quanto mais livros chegarem nas escolas, mais pessoas vão entender a história dos povos originários”, explica. Adequar as obras às complexidades regionais pode ser uma solução.
Quem regulamenta a compra dos materiais didáticos e das obras literárias em escolas é o MEC, por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Cada colégio escolhe dentre os 21 eixos – curadoria de livros escolhidos – para distribuir aos seus alunos no próximo ano letivo. Os livros são distribuídos nacional e gratuitamente nas redes de ensino pública e filantrópicas.
Um dos objetivos gerais é alinhar estes materiais com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), legislação reguladora de diretrizes para a educação básica. Uma parceria entre os Ministérios da Educação e da Cultura inclui as bibliotecas escolares no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas. A medida estabelece a ampliação e atualização do acervo, realizada de forma anual, o que pode acabar aumentando o acesso dos alunos a obras de escritores negros e indígenas.
Como competências específicas para o Ensino Médio nas áreas de Ciências Humanas e Linguagens na BNCC, por exemplo, está a compreensão da situação e histórico das populações indígenas e afro-brasileiras, assim como o entendimento de textos literários produzidos por pessoas pertencentes a estes grupos. Isso significa que durante o processo escolar, o aluno deve passar por trilhas de aprendizado que se relacionem com as diretrizes.
Livro didático em escola Mbyá Guarani no Rio Grande do Sul – Foto: Nonada
No Rio de Janeiro, a Gerência de Relações Étnico Raciais, vinculada à Secretaria de Educação Municipal, faz a consultoria, mediação e planejamento estratégico dos livros didáticos da capital carioca. Assim, os servidores fazem a adequação de materiais a partir dos princípios de ensinar as relações étnico raciais de forma transversal nos currículos.
“Eles dão os apontamentos necessários, desde tirar os estereótipos até falar de questões locais, como de pontos turísticos em uma cidade. Se cada estado tivesse o seu, como no Rio de Janeiro tem, acho que já seria um grande passo. Porque são pessoas extremamente técnicas e especializadas, que pensam esses materiais e conteúdos”, aponta Luciana.
O Ministério da Educação (MEC), quando questionado sobre iniciativas de ensino sobre o tema, destaca “o papel das Instituições de Educação Superior, que têm demonstrado especial preocupação quanto à implementação da Lei em questão, desenvolvendo diversas ações relevantes no campo da pesquisa, da produção de materiais didáticos e pedagógicos e da formação de professores, por meio de seus diferentes núcleos, laboratórios e grupos de estudos e de pesquisas”.
Olivio Jekupé conta que vem crescendo o interesse e contato também por parte de pesquisadores e professores universitários , mas que muitas vezes essa formação acaba ocorrendo já no exercício da docência, em escolas do ensino básico. “Os professores acabam prestando atenção na nossa palestra para também entender um pouco sobre a nossa cultura através da literatura”, conta.
Ele avalia que ainda há muito o que fazer para a correta aplicação da Lei nº 11.645. “Nem todo mundo segue a lei. O Brasil, como é um país muito preconceituoso, são poucos [profissionais] que trabalham essa questão. Temos várias áreas que podem ser trabalhadas, escritores indígenas, vídeos na internet, cantores indígenas”, sugere.
O MEC cita a Ação Saberes Indígenas nas Escolas, lançado em 2013 com o objetivo de oferecer formação aos professor, além de “recursos didáticos e pedagógicos que atendam às especificidades da organização comunitária, do multilinguismo e da interculturalidade que fundamentam os projetos educativos nas comunidades indígenas”.
O programa produziu núcleos como o da Universidade Federal de Santa Catarina, que publicou diversos livros e materiais didáticos sobre culturas indígenas, ainda que sem a presença de autores ou pesquisadores indígenas em posições de liderança nas ações. Em novembro, o MEC anunciou a reconstituição da Rede Saberes Indígenas e da Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena (Capema).
O governo cita ainda o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), iniciativa do MEC que apoia projetos de cursos de licenciaturas específicas para a formação de professores que trabalham nas escolas indígenas nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Os cursos são oferecidos por instituições públicas de ensino superior com período de seleção diferenciado.
Desde 2004, uma resolução do Conselho Nacional da Educação estabelece que as “Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais”. No entanto, Luciana destaca que não são todas as universidades que oferecem essa iniciativa. Algumas acabam, segundo ela, maquiando o currículo para se conformar à norma. O Nonada Jornalismo apurou que algumas universidades oferecem essa disciplina na modalidade online, com reclamação de alunos. Segundo os estudantes, isso impacta diretamente na atuação enquanto professores, gerando um efeito cascata na formação discente.
A criação dos Ministérios da Igualdade Racial e dos Povos Indígenas foi um marco no governo do presidente Lula para os povos indígenas, avalia o cacique Mauricio Kaingang, da Retomada Kaingang Kógūnh Má, de Canela (RS). “Essa lei existe há algum tempo, mas percebemos que não estava sendo cumprida. Com a mudança de governo e com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, percebemos que mais pessoas querem conhecer nossa comunidade, nossa relação com a vida e com o meio ambiente. Isso é uma vitória para nós”.
Assim como Olivio, ele também vai a escolas, junto com outras pessoas de sua aldeia, para ministrar palestras e oficinas sobre a história do povo Kaingang no Rio Grande do Sul. Os convites são feitos por professores e diretores de escolas, e o agendamento pode ser feito pelas redes sociais do cacique.
Cacique Mauricio Kaingang, da Retomada Kaingang Kógūnh Má, de Canela (RS) (Foto: divulgação)
Maurício é autor do livro “A araucária e a gralha-azul: uma história dos antigos kaingangs”, além de diretor do documentário “Konhun Mág – Caminho da volta à floresta de Canela”. “A gente vem fazendo muitos debates, oficinas, palestras e também abrindo para o diálogo, para o conhecimento, então a gente percebe essa força que vem tendo hoje, uma busca frequente sobre a cultura dos povos indígenas”, comemora.
A pesquisadora Luciana vai ao encontro da percepção de melhoria após a troca de governo. “A criação dos ministérios é um bom caminho para pensar no ensino em nível nacional. Infelizmente, quando as leis não vêm de cima, as pessoas não cumprem, as pessoas brancas acham que não é da conta delas ensinar relações étnico raciais”.
Ela critica também a ressalva que alguns docentes têm quando são chamados para dar aulas que envolvam esta temática. “Quando professores dão aulas sobre Grécia e Roma, por exemplo, eles pesquisam e se informam. Quando é sobre pessoas negras e indígenas, muitas vezes, alguns professores fazem de má vontade, alegando que não é seu lugar de fala. Mas a Grécia era?”.
Professores reclamam que seus estudantes têm dificuldades extremas em algumas disciplinas após dois anos de aulas online, além de apresentarem comportamentos dispersivos e energéticos, não condizentes com a imobilidade necessária para permanecer sentado em uma cadeira em sala de aula. Para a falta de atenção, Luciana apresenta como solução a retomada dos saberes tradicionais como metodologia pedagógica. A separação do corpo e mente e disciplinarização extrema da sala de aula como forma de controle prejudica o aluno, segundo ela.
“Eu acho que essas metodologias, elas criam outro clima na sala de aula e deixam os jovens mais à vontade a pensar, a filosofar, a refletir, a discutir, a se mexer. Eles não precisam ficar sentados em fileiras, então podem expressar com seu corpo, expressar com integridade.” Levar os estudantes para terem aulas na praça ou na horta comunitária do colégio é um exemplo de como pode funcionar esta integração. Desta forma, retoma-se o que os povos tradicionais já falam, para conseguir navegar em soluções para a educação.
“É importante ressaltar a recriação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI), no âmbito do Ministério da Educação, e da Coordenação-Geral de Políticas Educacionais Indígenas (CGPEI) e da Diretoria de Políticas de Educação Étnico-racial Educação Escolar Quilombola, vinculadas diretamente ao Gabinete da SECADI. A Secretaria coordena nacionalmente as políticas educacionais para a diversidade, com o intuito de superar as diferentes situações de exclusão educacional, promovendo um conjunto de ações que constituem uma agenda positiva do Estado junto aos diferentes atores social e culturalmente marginalizados.
É importante lembrar que a Lei 11.645/2008 representa uma grande conquista para o movimento indígena brasileiro no plano legal e reflete um contexto internacional de afirmação dos direitos sociais e individuais das minorias e dos grupos historicamente marginalizados. Nas últimas décadas, tem se estabelecido uma política de reconhecimento dos direitos das diversidades étnicas e culturais no âmbito do direito internacional, fazendo surgir acordos, decretos e convenções de natureza multilateral. A partir do estabelecimento desses marcos normativos, os sistemas de ensino e suas instituições têm buscado desenvolver ações voltadas para a implementação da Lei nº 11.645/2008.
No âmbito nacional, o MEC formulou, em 2008, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Embora nesse momento histórico, logo após a publicação da Lei nº 11.645/2008, ainda não estivessem claramente definidas no âmbito do Conselho Nacional de Educação (CNE) as Diretrizes relacionadas à temática dos povos indígenas, o seu tratamento já foi antevisto em diversas oportunidades, tanto no referido Plano, quanto nas Diretrizes que motivaram a sua formulação.
A CEB/CNE contratou duas consultorias para realizar estudo analítico sobre a temática da história e da cultura dos povos indígenas na Educação Básica e na Educação Superior, com o objetivo de subsidiar o CNE em sua função orientadora aos sistemas de ensino e suas instituições, zelando pela aplicação da legislação educacional, com vistas à garantia da qualidade socialmente referenciada da educação brasileira[1].
No tocante a ações implementadas pelos sistemas de ensino e suas instituições, é importante citar que, de modo geral, ações do MEC se destacam no âmbito do que propõe a Lei em questão:
. a promoção da formação continuada de professores, realizada por Instituições de Educação Superior (IES) em cursos de aperfeiçoamento e de especialização;
. a promoção da formação continuada de professores, realizada por secretarias estaduais e municipais de educação com recursos do MEC via Plano de Ações Articuladas- PAR; e a aquisição e distribuição de livros didáticos para as escolas de Educação Básica.
A CGPEI coordena dois programas de formação de professores indígenas, que tratam da implementação da Lei em questão, desenvolvendo diversas ações relevantes no campo da pesquisa e da produção de materiais didáticos e pedagógicos, por meio de seus diferentes núcleos, laboratórios e grupos de estudos e de pesquisas.
O Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Indígenas – PROLIND apoia projetos de Cursos de Licenciaturas específicas para a formação de professores para o exercício da docência nas escolas indígenas nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio. Os cursos são oferecidos por instituições públicas de ensino superior (IPES), selecionadas por meio de edital, com período de seleção diferenciado e divulgação em âmbito institucional, e repasse de recursos por meio de Termos de Execução Descentralizada (TED).
Os projetos de curso têm duração média de 5 anos e são organizados em períodos formativos distintos – Tempo Universidade quando os cursistas se deslocam para os Campi para participarem de módulos presenciais e Tempo Comunidade – momento em que a equipe pedagógica da IFES se desloca para as comunidades/escolas, onde atuam os professores cursistas, para uma etapa de formação voltada para a realidade das práticas pedagógicas. Os projetos devem integrar ensino, pesquisa e extensão e promover a valorização do estudo em temas como línguas maternas, gestão e sustentabilidade das terras e culturas dos povos indígenas.
A Ação Saberes Indígenas na Escola foi instituída por meio da Portaria nº 1.061, de 30 de outubro de 2013, como uma das ações do Programa Nacional dos Territórios Etnoeducacionais. São objetivos da Ação Saberes Indígenas na Escola: I- promover a formação continuada de professores que atuam na educação escolar indígena na educação básica; II – oferecer recursos didáticos e pedagógicos que atendam às especificidades da organização comunitária, do multilinguismo e da interculturalidade que fundamentam os projetos educativos nas comunidades indígenas; III – oferecer subsídios à elaboração de currículos, definição e metodologias e processos de avaliação que atendam às especificidades dos processos de letramento, numeramento e conhecimentos dos povos indígenas; IV – fomentar pesquisas que resultem na elaboração de materiais didáticos e paradidáticos em diversas linguagens, bilíngues e monolíngues, conforme a situação sociolinguística e de acordo comas especificidades da educação escolar indígena.
Nessa seara, também merece destaque o papel das Instituições de Educação Superior que têm demonstrado especial preocupação quanto à implementação da Lei em questão, desenvolvendo diversas ações relevantes no campo da pesquisa, da produção de materiais didáticos e pedagógicos e da formação de professores, por meio de seus diferentes núcleos, laboratórios e grupos de estudos e de pesquisas ou outras instâncias, como os NEABIS. Algumas IES, inclusive, tiveram a iniciativa de criar disciplinas obrigatórias e optativas, projetos multidisciplinares entre diferentes programas, cursos de extensão, dentre outras importantes ações. Assim, vale reafirmar, mais uma vez, ser imprescindível a inserção de conhecimentos, valores, atitudes e práticas relacionados a esta temática, convergentes com as Diretrizes Nacionais definidas para a Educação em Direitos Humanos e Educação para as Relações Étnico-Raciais, tanto nos currículos de cada etapa e modalidade da Educação Básica, bem como nos cursos de graduação e pós-graduação, por meio dos seus Projetos Político-Pedagógicos (PPP), Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDI) e Projetos Pedagógicos de Curso (PPC).”
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