“La fuerza”, colagem de Carinne Lira. A autora mostra a energia que traz, herdada da vivência da mãe e da avó – Imagem: reprodução
Mulher periférica, feminista, artista-pesquisadora. Em suas práticas artísticas, Carinne Lira acolhe suas questões identitárias, investiga as engrenagens da colonização a partir de sua memória familiar, em suas dimensões de gênero, raça e classe. A artista busca elaborar através de uma relação entre arte, natureza e ancestralidade, narrativas-outras para compreender o processo de mestiçagem no território brasileiro, que manifesta em suas colagens, fotoperformances e escrita.
Paraibana de nascença e carioca de criação, transita entre o Rio de Janeiro e Foz do Iguaçu faz alguns anos. Sua vinda à fronteira trinacional tem a ver com os estudos. Ela é mediadora cultural em formação pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Unila. Foi colaboradora no Projeto de Pesquisa Arte e Natureza: Poéticas e Pedagogias da Mãe Terra, na mesma instituição.
Dentre as exposições nas quais participou, destacam-se: Panorama das Artes Visuais da Bacia do Paraná 3 – Museu de Arte de Cascavel, Cascavel/ PR e Ecomuseu, Foz do Iguaçu/ PR. Retinas de la Frontera Trinacional (Brasil, Argentina y Paraguay), Museu Digital da Unila. Terra Presente Ausente no Festival en Mi Balcón, Buenos Aires/ Argentina. Poéticas Femininas na Periferia, Paço Imperial, Rio de Janeiro/ RJ.
“Recolho os cacos Acolho os vazios o meu silêncio é branco a catástrofe também.
Não sou daqui, não sou de lá Estrangeira de mim, por isso germino entre as águas e mesmo assim eu sinto sede.
tudo é cinza e duvidoso Nas sombras lambo minhas feridas abertas Recolhendo os cacos acolhendo os vazios”
(Memória estilhaçada, de Carinne Lira)
La Matriarca, 2020. Da série ‘Raízes: onde ensaio minhas firmezas’
A arte de Lira é uma espécie de escavação da memória. Seus recursos de linguagem são recortes. Podem ser físicos como no caso de uma velha fotografia, ou sejam eles fiapo de assunto transmitido oralmente na família. Vestígios de onde pinça particularidades da constituição de sua própria existência. Os fragmentos que escolhe para compor sua obra fazem parte de uma tentativa de evidenciar as camadas sutis que sedimentam e cristalizam um status quo. A autora faz da arte bisturi silencioso que expõem as camadas sutis de contradições de uma sociedade excludente e machista.
La madre raíz, 2020.
O meu devir em arte e vida são as minhas raízes. São por meio delas e com elas, que eu busco descolonizar minha memória familiar, por uma perspectiva matriarcal. Um mover que eu considero curador e cheio de encanto. Além de contribuir para que eu localize e compreenda o meu papel social no enfrentamento do machismo, racismo e na luta de classes.
“Busco descolonizar a minha história, (re)construindo a memória das mulheres que vieram antes de mim. Nessa experiência arqueológica, de trazer para perto a lembrança delas, eu experimento a força geradora e pulsante que em mim habita. A travessia é longa, poderosa, por muitas vezes me confronto com a dor, minha e delas. E diante de tantas sensações, percebo que é através desta investigação que adquiro lucidez e mais compreensão de quem eu sou, através das camadas que vou adentrando, com e por elas reinventando. Considero hoje, que este é o meu ritual para honrar as minhas ancestrais, acolher nossas dores e transmuta-las”, comenta Carinne Lira sobre a forma e conteúdo de suas criações.
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Para ela, a prática artística permitiu através da fotografia e da colagem materializar este devir que tanto lhe “agiganta e satisfaz”. E conclui: “Esse é o meu rito de travessia.”
La fuerza, 2020. provando minha força, que nasceu antes de mim. foi ela, la fuerza, quem me fez nascer dormindo, literalmente. pronta pra fazer o sonho acontecer. minha avó materna quem me acolheu primeiro nessa jornada em ser carinne. e quando me pegou nas mãos, disse: “essa menina nasceu dormindo…” conta minha mãe que ela quem decidiu me acordar. e sou grata, minha vó, pelo teu gesto, por esse despertar pra vida, por ter sido você. talvez por isso eu te sinta tanto! y gracias por minha mãe, sempre, por ter sido a potência-viva-geradora que me gestou. mas sabe vó, às vezes eu tenho desejo de viver apenas no sonho, dentro da dobra do olho, imensar o escuro, sabe? aquilo sobre escurecer processos. sinto que lá o mistério se revela sem medo, de modo que eu aconteço por inteira. “
Colagem digital, 2021.
Vó, minha mãe veio de tuas selvas e eu também. os galhos caídos de tuas árvores me trouxeram para o início, onde eu sinto a força de nossas raízes. Me permito sentir as vozes que vêm da seiva bruta e elas cantamw nossos nomes. carregado pelas águas, o mistério sobre nós costura a magia que nos faz ser quem somos.
acolho o vibrar das águas e entoo também os nossos nomes. descubro o deserto de minhas fantasias, enfrento as inconsistências.
esse… é o meu rito de travessia.
Raíz Helena
Quem foi Antonia?
ANTONIA: eles tentaram te apagar mas eu te evoco! Antonia, mãe de Helena, mulher escravizada, pariu sua filha que nasceu na senzala já liberta. (será?) Antonia, minha tataravó materna, eu te sinto. Antonia, evoco este nome porque é a única lembrança que eu tenho tua. às vezes me pergunto se era esse mesmo o teu nome Antonia, Helena e todas as outras… Evocarei seus nomes! E assim vamos sendo
O meu tempo se constrói para dentro Minha avó paterna, Lourdes. E o tempo que se derrama.
“A colagem nasce e se constitui através de fragmentos encontrados acerca de minha avó Lourdes, mãe de meu pai: Uma foto 3×4 de Lourdes; um escrito dela sobre amizade; um outro papel onde se nota o interesse dessa mulher em busca de trabalho. E por fim, um santinho, de nossa senhora, um dos inúmeros que ela possuía.”
Uma mulher que faz as suas próprias escolhas e gere sua vida em harmonia com as suas crenças, não quer guerra com ninguém. Mas existe uma dinâmica operante, que necessita estar em guerra com essa mulher, para que a estrutura capitalista – colonial – patriarcal perdure. Fazendo parte das nossas formas de experiências de vida, inclusive no âmbito familiar.
A colagem dessa postagem é o segundo trabalho da série ‘Fragmentos’ e é um desdobramento das raízes, onde eu busco refletir acerca das sutilezas das opressões de gênero, raça e classe, que atravessaram a minha família.
A colagem nasce e se constitui através de fragmentos encontrados acerca de minha avó Lourdes, mãe de meu pai:
Uma foto 3×4 de Lourdes; um escrito dela sobre amizade; um outro papel onde se nota o interesse dessa mulher em busca de trabalho. E por fim, um santinho, de nossa senhora, um dos inúmeros que ela possuía.
Cresci ouvindo que ela nunca quis trabalhar, que era desquitada e talvez esse acontecimento tenha contribuído para que a sua filha tenha “se tornado” lésbica. O que levava a outros comentários, tais como: ela não é boa mãe, ela é seca… Além de outras falas que se tivermos um olhar atento, em certa medida, deslegitimam o apreço que essa mulher tinha por sua religião. Pois, “como assim você optou por se divorciar, sabendo que nos ensinamentos católicos se aprende que a partir do momento no qual uma mulher se casa, é imposto a ela o ‘até que a morte nos separe”?
Logo, os fragmentos que constituem a colagem, foram escolhidos numa tentativa de evidenciar que existem histórias sobre nós que são encobertas e assim é feito, sutilmente, para que a manutenção do sistema seja realizada.
Lourdes era católica, devota de nossa senhora. Pediu o divórcio após descobrir uma traição. Foi julgada por isso. Tiraram um de seus filhos, meu pai, num processo de separação, traumático, tanto para a criança quanto para ela.
“antigamente, as mulheres casadas não tinham a liberdade de tirar um passaporte sozinhas quando eram casadas. Após o matrimônio, a mulher precisava da autorização do marido para viajar, e por isso era concedida uma espécie de ‘passaporte em conjunto’. “
O meu trabalho em arte e natureza, que considero um devir de arte e vida, está relacionado a minha origem/ família/ ancestralidade, tendo existências subalternizadas a centralidade. Ou seja, as histórias encobertas dessas vidas são a base que ergue majoritariamente a corpa das produções.
Esse foi o lugar que eu escolhi fazer como caminho – ou será que foi ele quem me escolheu? – para (re)construir minha memória familiar e honrar as minhas e os meus antepassados.
Nessa caminhada eu tenho acesso a relatos de familiares, fotografias, cartas e documentos que me auxiliam a compreender certas questões de gênero, raça e classe.
Aprendi que histórias de vidas podem contribuir para expandir/modificar nosso modo de ver o mundo. Elas podem agigantar nosso olhar diante da realidade, e ter a possibilidade de enxergar por uma ou várias outras perspectivas traz um discernimento que contribui para que, coletivamente (ao lado dos meus, sempre à esquerda) a construir uma sociedade mais justa, já individualmente, para que eu consiga atravessar minhas fantasias e mover meus desejos.
Escrevo essas palavras porque há algum tempo, ao recolher fragmentos do meu passado familiar, tive acesso ao passaporte de minha bisavó e bisavô paternos, avós maternos de meu pai, que eram portugueses e migraram para o Brasil no século XX. E nesse contato tive uma surpresa que me deixou reflexiva enquanto eu observava o passaporte dele/deles.
Compartilho aqui para que possamos refletir acerca da dinâmica patriarcal que foi se construindo e se perpetuando em nossas sociedades ao longo do tempo. O que evidencia a urgência e a necessidade de ser diária a nossa luta contra o machismo e suas sutilezas, para a construção de um mundo mais justo.
Pai e Mãe, meu eterno voltar.
Memória Estilhaçada, 2021.
Não é fácil a tarefa de elaborar esta investigação, pois ela traz à tona as feridas fruto da colonização. Tem muita dor envolvida nesse processo, mas percebo que, quanto mais adentrarmos estas memórias que nos foram sequestradas mais poderemos lutar “contra o poder normatizador da branquitude, inclusive no plano dos afetos que são expressos na tessitura de memórias familiares, (DUARTE, 2019, p23) que busco evidenciar em minhas obras. Sei também da (im)possibilidade de saber de todas as lembranças, pois a experiência colonial não me permite adentrá-las. Porém, sinto como dever pessoal em honrar minhas ancestrais, e também um dever político enquanto sujeito social que sou trazer esta reflexão, pois compreendo que é uma tarefa da qual não posso me furtar. Minhas colagens, tais como são, se tratam de uma escolha política, bem como uma forma de tentar me reconciliar com o meu passado estilhaçado.
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