Teresa Urban – Foto: João Urban
De Gunther Furtado A primeira coisa que eu lembrei quando a Maricota (como a minha mãe chamava a Marianna Camargo) me pediu este texto foi da resposta que eu dei a uma repórter que ligou para o telefone da Dona Teresa no meio do velório buscando uma frase sobre a morte: “Quem morreu foi minha mãe”, disse meio irritado. Naquela hora eu não tinha muito como responder (até peço desculpas pela irritação). A figura pública era minha mãe e, ainda que muitíssimo misturadas, a mãe morreu maior.
Mas as pessoas são novelos. Há fios que se encompridam e enroscam e fazem nós. Nós somos feitos de muitos emaranhados. Bem, Teresa tinha mais fios para emaranhar e sempre achava mais um: foi do movimento estudantil, presa, torturada, exilada, condenada, apenada, presidiária e “noviça”; morou no campo para conhecer o mundo real e conscientizar as massas; foi jornalista no Voz do Paraná, Veja, Jornal do Brasil, Estadão/JT e provavelmente algum outro que devo ter esquecido; foi ambientalista, fez livros, contou histórias; pensou cidades e fez mais livros. De novo o velório: fios de todas as cores, falas de todos os assuntos, de todas fases, pessoas que se conheceram lá e que tiveram relações igualmente intensas em cada tema. Tão intensas, que cada tema parecia o único.
Em uma das vezes em que foi presa na década de sessenta, na qual ficou em cela de onde podia ver a cela das prostitutas, é que a percepção que definiu o jeito de pensar o Brasil tomou o contorno definitivo: a violência que recaiu sobre quem divergia da ditadura era basicamente a mesma de sempre para quem era do andar de baixo. Ampliou-se a uma variedade maior de vítimas o método autoritário brasileiro de desde sempre.
Medo, o que mais sentimos foi medo. Encharcados. Atolados. Quando vivíamos na Coronel Dulcídio, lá por 78, um ano antes ou depois, o Comando de Caça aos Comunistas mandou um Cartão de Natal com uma caveira dizendo “vamos te pegar!”. Fui eu que abri. Para ela, o pior foi ter sido eu a ter aberto: eles ganhavam sempre, conseguiam nos deixar com medo. Mais de vinte anos depois, após redemocratização(?!), ainda era possível ouvir os cliques da escuta no nosso telefone. 20 Mais vinte anos e Teresa descobre que a anistia não era assim tão irrestrita: a condenação dela impedia que ela emitisse um atestado de bons antecedentes… o Estado havia esquecido de anistiar essa parte. Sola foi com sua pena… morreu sem ter bons antecedentes.
Medo é o que a gente sente, mas a vida é como convivemos com ele. Fez muita festa, festa de todo tamanho. Já que a vida já não podia ser normal, não foi. No dia 26 de março, fez 78 anos que Teresa nasceu e foi bem essa a velocidade em que vivia: 78 rotações.
Medo, às vezes ficava mais forte. Quando a geração-que-vem chegou, a dos anos 2010, com os escrachos e pesquisas para que nunca mais se esqueça, o medo voltou com força. Medo de que as “crianças” não tivessem noção clara do que os esperava, caso a natureza estruturalmente autoritária da sociedade brasileira rebrotasse nas rachaduras do verniz de civilização em que vivemos, “brincando” que o inferno, não, não é muito mais perto da superfície.
Quando o menino Ismael foi preso e torturado simplesmente porque estava no lugar errado na hora errada, mais uma rachadurazinha no verniz, Teresa escreveu-lhe uma carta e falou do que o medo faz no comecinho: de como a brutalidade da tortura aturde e destrói o modo como a realidade se apresentava. Disse de novo na carta que o método autoritário nunca foi desconfigurado para quem está abaixo do verniz. Já estava lá antes de 1964/1968 e continua aqui, como vimos e vemos com os personagens e configurações atuais da nossa política tropical cada vez mais quente.
E para falar das flores, Teresa acreditava na impossibilidade da humanidade escolher a autodestruição se estivesse informada o suficiente. Se muita gente soubesse o que estava em risco se o avanço sobre o território sem gente branca e rica não fosse freado, o mundo mudaria o jeito de tratar o planeta. Sendo a Teresa como era, não estaria viva se não brigasse, mas escolheu a briga de informar sobre meio ambiente porque achava que não era território em que o medo fosse assim tão forte. Foi. Apanhou, de novo, por cuidar da água e por criar parques. Não se pode evitar.
Seja quando brigava por um mundo de mais justiça ou por um cuidado maior sobre o planeta ou para 21 que a ciência fosse base para qualquer decisão coletiva ou para que o coletivo fosse base para decisões políticas ou sobre alguma outra briga que brigou, vivia o que a movia, sempre gostava de crianças e de futuro.
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