Por Luísa Pécora – Itaú Cultural No dia de seu aniversário de 3 anos, Paloma Rocha viu o pai, Glauber, chegar à porta de sua casa, na Rua General Labatut, em Salvador (BA). O jovem diretor vinha em um jipe e estava acompanhado do ator Geraldo del Rey e de uma terceira pessoa, de quem Paloma não se recorda com segurança. “Ele foi me dar um beijo porque ia viajar”, contou ela, que hoje também é cineasta. “Minha tia-avó tinha feito uma capinha para mim, e ele botou a capinha no meu ombro. Acho que era a capa do Antônio das Mortes que ele estava passando para mim.”
Glauber Rocha nos bastidores das filmagens, com Maurício do Valle, ator que interpretou Antônio das Mortes – (imagem: divulgação)
O ano era 1963 e a viagem seria para o sertão da Bahia, onde Glauber Rocha (1939-1981) rodaria um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro: Deus e o diabo na terra do sol. Seis décadas após o lançamento do longa, que chegou às salas em 1º de junho de 1964, Paloma ainda o associa ao beijo de aniversário – mas não só. “Para mim”, diz ela, “Deus e o diabo representa uma aula de cinema”.
Nessa opinião, a diretora certamente não está sozinha. Embora seja impossível dar conta de todo o reconhecimento que Deus e o diabo na terra do sol recebeu ao longo de 60 anos, eis uma breve e incompleta tentativa: o longa disputou a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1964, e voltou ao evento em 2022 para exibição da cópia restaurada em 4K; ocupou a segunda posição na lista dos cem melhores filmes brasileiros publicada pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em 2016; ganhou o selo da célebre Criterion Collection, que em julho lançará o blu-ray do filme no mercado norte-americano; impressionou cineastas como Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e Manoel de Oliveira (1908-2015); inspirou inúmeras análises de críticos e pesquisadores no Brasil e no exterior; e lançou – ao lado de Vidas secas (1964), de Nelson Pereira dos Santos, e Os fuzis (1964), de Ruy Guerra – o movimento conhecido como Cinema Novo, que colocou o Brasil no mapa-múndi do cinema moderno.
Disponível para streaming gratuito na Itaú Cultural Play, Deus e o diabo na terra do sol também produziu algumas das imagens mais marcantes do audiovisual brasileiro. É o caso da sequência inicial, na qual a música de Heitor Villa-Lobos (1887-1959) serve de trilha sonora a um plano aéreo do sertão e a um close da cabeça de um animal morto. Ou da sequência final, na qual Manuel e Rosa correm em disparada e a voz de Sérgio Ricardo (1932-2020) anuncia que “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”. Ou das cenas em que a câmera gira ao redor de um beijo, Corisco salta diante de Antônio das Mortes e Manuel sobe a ladeira com uma pedra na cabeça.
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Filme de Glauber Rocha está disponível na Itaú Cultural Play – (imagem: divulgação)
As referências foram muitas – dos livros de Guimarães Rosa (1908-1967) aos filmes de Serguei Eisenstein (1898-1948), do faroeste americano ao Neorrealismo italiano – e o resultado, profundamente original. Nas palavras do crítico Ismail Xavier, Deus e o diabo na terra do sol é um longa heterogêneo no som e na imagem, que dá lugar a múltiplas vozes e estilos de decupagem. “A narração do cantador, os comentários musicais, o trabalho de câmera, a montagem e a encenação nem sempre estão em sintonia”, escreveu Xavier no livro Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome, publicado em 1983. “As personagens, ao se constituírem em peças de um jogo que as ultrapassa, demonstram diferentes graus de consciência frente aos estratagemas de que são agentes ou vítimas. Sua representação é iluminada a partir de focos diversos, num jogo retórico que marca a convivência de diferentes perspectivas.”
Também escrito por Glauber, Deus e o diabo na terra do sol acompanha a trajetória de Manuel (Del Rey), um vaqueiro pobre que vive no sertão nordestino. Injustiçado numa partilha de gado, Manuel mata o coronel a quem prestava serviços, foge de seus capangas e passa a seguir o beato Sebastião (Lídio Silva), para desespero da mulher, Rosa (Yoná Magalhães). Mais tarde, um massacre contra os fiéis leva Manuel a unir-se ao bando do cangaceiro Corisco (Othon Bastos), que está na mira do matador Antônio das Mortes (Maurício do Valle).
Cena do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (imagem: Frame do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol)
Quando rodou o filme, Glauber tinha 24 anos e já havia dirigido o longa-metragem Barravento (realizado em 1961, masexibido no Brasil após Deus e o diabo na terra do sol). A saga de Manuel se insere entre dois trabalhos fundamentais da obra teórica do cineasta: o livro Revisão crítica do cinema brasileiro, publicado em 1963, e o manifesto Uma estética da fome, apresentado em 1965.
Em Revisão crítica, Glauber expressa sua preferência por um cinema brasileiro engajado social e politicamente e rejeita os caminhos seguidos por estúdios como a Vera Cruz. Em Uma estética da fome, defende a criação de uma linguagem audiovisual adequada às limitações orçamentárias da produção nacional. Todas essas considerações estão, de alguma maneira, presentes em Deus e o diabo na terra do sol.
“Uma das inovações do filme é tratar o que se considera subdesenvolvimento como dado estético de criação, ou seja, fazer da falta de recursos um dado de invenção”, afirmou Eduardo Morettin, professor de história do audiovisual brasileiro na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e diretor do Cinusp Paulo Emílio. “Há no filme um diagnóstico social, um retrato do país, da miséria e do sertão, visto como raiz de uma série de questões para se pensar o Brasil. Mas isso não é traduzido em linguagem didática, muito pelo contrário.”
Segundo Morettin, alguns aspectos de Deus e o diabo na terra do sol estavam em sintonia com o cinema moderno de outros países, como o uso de locações reais e do faux raccord(quando a passagem de um plano a outro se dá sem ligação ou continuidade direta). Ao mesmo tempo, o filme trazia elementos particulares ao articular dados da cultura brasileira do ponto de vista tanto erudito quanto popular.
O professor destacou, ainda, os muitos momentos em que Deus e o diabo na terra do sol recusa a representação naturalista: “Por mais que a experiência do cangaço seja realizada em locação, há, por exemplo, uma dimensão muito teatral na relação da câmera com o Corisco”.
A linguagem proposta por Glauber representou um desafio à própria crítica de cinema, como recordou José Carlos Avellar (1936-2016) em entrevista que acompanha o DVD do filme, lançado em 2002: “Havia uma forma de compor o filme que pegava alguma coisa do Neorrealismo e pegava alguma coisa do Eisenstein. Naquele momento, essas duas possibilidades pareciam impossíveis de serem conciliadas. Quer dizer, ou bem se fazia cinema à maneira do Neorrealismo, ou bem se fazia cinema à maneira do Eisenstein; ou se montava, ou se fazia planos longos respeitando a realidade diante da câmera”, relembrou o crítico, que escrevia para o Jornal do Brasil em 1964.“Essa maneira de filmar, que usava luz natural, que era de um certo modo muito documental e com muita montagem dentro… essa maneira era uma novidade para a gente.”
Glauber Rocha escreveu e dirigiu “Deus e o diabo na terra do sol” (imagem: divulgação)
Glauber realizou Deus e o diabo na terra do sol em colaboração com uma equipe pequena. O time de produtores era formado por Luiz Augusto Mendes, Agnaldo Azevedo e Jarbas Barbosa, além do próprio cineasta. O diretor de fotografia era Waldemar Lima, que contava com o apoio do assistente de câmera Eufrasio e do maquinista Roque Assis. Na equipe de som estavam Aluizio Viana, Geraldo José e Rafael Valverde, que assinou a montagem. E os assistentes de direção eram Walter Lima Jr. e Paulo Gil Soares, este também responsável pela direção de arte e pelo figurino. A mãe de Glauber, Lucia Rocha, confeccionou a roupa vestida por Yoná Magalhães e as meias usadas por Sônia dos Humildes, que interpretou Dadá. E, para as cenas rodadas em Monte Santo, os figurantes foram escolhidos entre os próprios moradores.
A literatura de cordel foi a principal referência dada por Glauber ao fotógrafo Waldemar Lima (1929-2012). Em outra das entrevistas que acompanham o DVD, Lima afirmou ter feito vários testes para chegar à fotografia idealizada pelo cineasta, que deveria ter a textura das xilogravuras e ser “mais sertão, mais preto e branco, mais caatinga e menos artifícios”.
A câmera na mão foi usada para se chegar ao “movimento total” que Glauber queria dar à dramaturgia e também em razão da filmagem em terreno acidentado e da impossibilidade de recorrer a equipamentos que levassem muito tempo para ser montados. Na entrevista, Lima descartou a muito difundida ideia de que Deus e o diabo na terra do sol se fez apenas na base do improviso. “Não é possível que aquele filme, com aquela mise en scène, com aquela movimentação de atores, com todo mundo certinho no lugar, fosse improvisado”, garantiu. Segundo o fotógrafo, Glauber ensaiava com os atores e com ele, marcando as sequências e os momentos em que os cortes deveriam ser feitos. A improvisação ocorria quando, durante a filmagem, o cineasta deixava de seguir as marcações previstas. “O Glauber ia me dirigindo no meu ouvido, do meu lado, dizendo: ‘Não corta, está ótimo, não corta agora, deixa o pessoal andar, vai para a direita, vai para a esquerda, larga a Yoná, pega o Geraldo”, lembrou o fotógrafo. “Ele cantava no meu ouvido e eu ia fazendo.”
O professor Eduardo Morettin destaca essa dinâmica de interação entre atores e câmera como uma das marcas do cineasta. “É muito específico do Glauber esse ir e vir, esse modo como às vezes se aproxima do corpo e às vezes se afasta”, definiu, apontando também para a importância da montagem neste cinema aberto às interferências do espaço e do momento da filmagem. “Não é que a montagem vá dar linha ao fluxo, mas vai impedir que o rio extravase muito pelas margens.”
Othon Bastos como Corisco em Deus e o diabo na terra do sol (imagem: frame de vídeo)
A trilha sonora é outro elemento que ajuda a conduzir a narrativa de Deus e o diabo na terra do sol. A obra de Villa-Lobos divide espaço com poemas escritos por Glauber e musicados por Sérgio Ricardo, que as interpretou seguindo as orientações do diretor e a tradição dos cantores de feira. Assim, a música pontua e interfere em várias cenas, como aquela em que as vozes do cantor e, depois, de Antônio das Mortes fazem um apelo: “Se entrega, Corisco!”.
Tantas inovações e ousadias causaram impacto logo nas primeiras exibições. Em texto publicado em 2014 pela revista piauí, o diretor e montador Eduardo Escorel relembrou uma sessão para convidados realizada em 17 de março de 1964, no Rio de Janeiro, na qual o público “acreditou ter testemunhado uma revelação prodigiosa”. Segundo Escorel, “quando o coro entoou ‘o sertão vai virar mar e o mar virar sertão’, irromperam aplausos entusiasmados, pontuados por gritos de ‘gênio, gênio!'”.
Mas os 60 anos de Deus e o diabo na terra do sol também coincidem com os 60 anos do golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil. E, embora não tenha tido grandes dificuldades com a censura, o filme encontrou o público em dois momentos distintos: as primeiras exibições, em março, ocorreram em tempos de democracia, enquanto a sessão em Cannes e a estreia no circuito comercial já se deram sob o regime militar. Em outras palavras, um longa que inspirava tantos questionamentos sobre a realidade brasileira chegou às telas quando o país caminhava na direção contrária.
“É uma obra que, quando produzida, tinha no horizonte uma perspectiva que se desfez com o golpe de Estado”, afirmou Eduardo Morettin. “Deus e o diabo pensa a história no sentido de resgatar aquilo que é potência a ser utilizada para transformar o presente. Quando estreia no cinema, o filme está em completo descompasso do ponto de vista dessa leitura.”
Seis décadas depois, no entanto, as questões e ideias trabalhadas por Deus e o diabo seguem atuais. “Há 22 anos exibo este filme aos alunos, e todo ano me emociono com ele”, contou Morettin. “Muitos filmes acabam indo para o museu, mas Deus e o diabo continua a nos requerer, a nos demandar, a nos perguntar sobre o país. A preocupação que Glauber tinha de pensar a colonização, a presença do elemento estrangeiro e as dinâmicas de poder do ponto de vista estético e social – tudo isso continua muito presente.”
Para Paloma Rocha, o filmeresiste à passagem do tempo porque trata de “um tema universal, que é o básico: a luta de classes, a exploração do homem pelo homem, os abusos, os assassinatos, a violência, a loucura do messianismo que mais à frente se encontra com a loucura revolucionária”. “A obra do Glauber tem isto: conforme o tempo passa, fica mais atual, felizmente ou infelizmente”, comentou. “No Brasil, as coisas mudam muito lentamente e, estruturalmente, muito pouco.”
A relevância do tema e a qualidade estética de Deus e o diabo na terra do sol sem dúvida colaboram para que o filme mantenha sua força. Mas há outro fator crucial: trata-se de uma obra que ainda pode ser vista, e em boa qualidade.
A recente restauração em 4K é um de muitos esforços feitos para preservar o legado de Glauber, um trabalho que começou com Lucia Rocha e segue com Paloma. Vários projetos foram realizados no guarda-chuva da instituição Tempo Glauber, que funcionou de 1983 a 2017, sempre em meio às dificuldades impostas pela carência e pela instabilidade das políticas e das iniciativas voltadas para a preservação. Quando a Tempo Glauber encerrou suas atividades, 300 caixas de material foram retiradas do casarão onde a instituição funcionava, no Rio de Janeiro. Dessas, 200 pegaram fogo no incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, em 2021. “A documentação do Tempo Glauber sumiu”, disse Paloma. “É como se o Brasil tivesse Alzheimer: não lembra mais, acabou. Então eu luto contra esse Alzheimer, que é o esquecimento de quem somos.”
Paloma, que tem o desejo de fundar o Instituto de Preservação Lucia Rocha e de restaurar as obras da fase europeia de Glauber, diz sentir grande realização em “mostrar os filmes e ver o encantamento das pessoas”. Uma das sessões mais marcantes para ela ocorreu em 2008, quando a primeira restauração de Deus e o diabo foi exibida em um parque da periferia de São Paulo. “Era de tarde, eu sentei na primeira fileira, e de repente um garotinho falou para mim: ‘Tia, nunca ouvi uma música tão bonita!’. Eu me emocionei e disse: ‘Isso se chama Villa-Lobos’”. Mais tarde, o mesmo menino perguntou à cineasta se poderia levar cartazes do filme para forrar o barraco no qual morava com a mãe e, assim, barrar a entrada do vento. “Quer dizer: há várias maneiras de uma obra de arte chegar a seu público”, observou a diretora. “Esse inusitado é o que mais me fascina. Longe das coisas importantes, das críticas e teorias, são esses pequenos detalhes que me fazem ter prazer em trabalhar com a preservação.”
Outra motivação de Paloma nos esforços de restauração é combater a ideia de que a obra de Glauber seja “hermética”. Ela acredita que o cuidado com som e imagem ajuda a tornar os filmes mais compreensíveis, e diz que a própria restauração em 4K de Deus e o diabo na terra do sol permitiu um melhor entendimento dos diálogos. “Eu mesma nunca tinha entendido aquele filme direito”, comentou. “Eu tinha impressões sobre o filme, mas não entendia direito aquela dramaturgia porque não entendia o que os personagens diziam. Agora, o filme se torna compreensível do ponto de vista de sua narrativa e de seus diálogos. E também se veem vários tons de cinza, as cores do preto e branco que não se viam antes. Tudo isso influencia na sensibilidade de quem está assistindo.”
Para o professor Eduardo Morettin, pode ser desafiador apresentar um filme como Deus e o diabo na terra do sol ao público jovem, que assiste de forma intensa a seriados e ficções produzidos para o streaming e que está inserido no universo do TikTok, no qual é preciso prender a atenção do espectador em questão de segundos. “Por outro lado, isso faz com que o público possa se surpreender diante dessas imagens, diante de algo absolutamente diferente do que está acostumado a ver do ponto de vista visual e sonoro”, opinou. “Para os corações e mentes abertas, Deus e o diabo na terra do sol pode ser um convite a uma experiência completamente nova e transformadora na relação com o cinema.”
O professor também considera que a preservação e a difusão de obras como essa são fundamentais para colocar o público em contato com um patrimônio audiovisual que ele desconhece. “Falamos do Glauber pela grandiosidade que ele tem, mas essa é uma questão que afeta todo o cinema brasileiro”, pontuou.
Nesse sentido, os 60 anos de Deus e o diabo na terra do sol convidam a reflexões que vão além da obra e do próprio realizador. “Uma maneira de comemorar o filme é justamente trazer a importância dos investimentos na preservação do audiovisual brasileiro, para que outros filmes de Glauber e de outros cineastas possam continuar fazendo seus aniversários”, resumiu Paloma. “E a isso acrescento que toda festa tem de ter gente. Então que o público assista a Deus e o diabo na terra do sol.”
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