No Paraná o Movimento Negro Unificado (MNU) surge em 1996 – Foto: Divulgação
A ditadura militar no Brasil, instaurada há exatos 60 anos, reprimiu e silenciou a luta dos movimentos raciais. Documentos encontrados pelo UOL junto ao Arquivo Nacional revelaram que militantes negros foram monitorados, perseguidos e vítimas de ações que tentaram a todo custo impedir que a pauta racial crescesse.
Os anos de 1970 e 1980 foram marcados por uma intensa repressão aos movimentos sociais no Brasil, especialmente aqueles que contestavam o regime militar. Para o movimento negro, essa era uma época de desafios, onde a luta contra o racismo se tornou ainda mais perigosa sob o olhar vigilante das autoridades.
Durante o regime, líderes negros foram alvo de fichamentos e perseguições sistemáticas. Documentos revelam que 41 desses líderes morreram ou desapareceram em circunstâncias ligadas a operações militares, conforme relatórios da Comissão da Verdade de São Paulo. Além das perdas humanas, centenas de prisões políticas e casos de tortura foram registrados, evidenciando a brutalidade com que o regime tratava qualquer forma de resistência.
Apesar da repressão militar, surgiu em São Paulo o Movimento Negro Unificado (MNU) contra o Racismo – uma reação à ideologia dos militares que pregavam a existência da democracia racial no Brasil. No final da década de 1980, os movimentos negros avançaram em seu projeto político de denúncia do racismo institucional, contribuindo para a construção de políticas afirmativas de valorização da população negra.
No Paraná, os grupos militantes se organizaram mais tarde. O Movimento Negro Unificado (MNU) surge apenas em 1996. Nos anos do regime militar, qualquer pessoa que tentasse contestar a narrativa de um Brasil sem racismo e reivindicar o restabelecimento da democracia, se tornavam alvos de uma repressão intensa e sistemática.
No estado, houve um apagamento sistemático da militância negra neste período. Pesquisadores e militantes contam que o debate de questões raciais encontrava resistência mesmo nos espaços mais politizados e acadêmicos. Nas periferias, a população negra era alvo frequente de ameaças, violências e humilhações.
Cartaz do acervo do Arquivo Nacional do Brasil pelo fim da escravidão do Brasil. – Foto: Arquivo Nacional
A ideia de democracia racial, popularizada por Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala” (1993), foi adotada como discurso oficial durante a ditadura militar no Brasil, promovendo a ilusão de harmonia racial enquanto o racismo cotidiano persistia sem desafios significativos.
O pesquisador Ivan Luiz Monteiro, do Instituto Afro-Brasil do Paraná e da Cidade Smart, conta que essa ideia foi adotada como projeto nacional ainda nos anos 30, durante a Ditadura Vargas, mas foi utilizada como propaganda política de forma massiva nos anos do regime militar.
“A democracia racial é essa condição de que o Brasil é formado sem segregação racial, algo que acontecia nos Estados Unidos, por exemplo. O Brasil seria um contraexemplo de harmonia entre esses diferentes agrupamentos humanos, a população branca, negra e indígena”, diz Ivan.
Apropriando-se desse mito, o regime militar utilizou-o para desmobilizar e criminalizar qualquer movimento organizado que questionasse as relações raciais no país. A Lei de Segurança Nacional foi instrumentalizada para reprimir denúncias de racismo, enquadrando-as como subversão e incitação ao ódio.
Durante este período de censura, abordar questões de negritude ou criticar as estruturas raciais dominantes no Brasil tornou-se um ato perigoso para ativistas. O censo de 1970, controlado pelos militares, omitiu categorias de “raça”, obscurecendo dados cruciais sobre a realidade racial no país e contribuindo para silenciar as demandas do movimento negro.
“O regime militar se apropriou do mito da democracia racial e reforçou o discurso de que no Brasil não há racismo. Empregou recursos ostensivos no impedimento da discussão e na desvalorização de movimentos raciais que tentaram trazer essas pautas. Eles argumentavam que os militantes comunistas estavam tentando importante um problema, copiando o movimento dos panteras negras nos Estados Unidos, por exemplo”, conta Ivan.
A estratégia de silenciamento também perpetuou a visão equivocada de que apenas jovens brancos de classe média eram alvo da violência política, enquanto a opressão sistemática sobre outros grupos, incluindo a população negra e indígena, permanecia invisibilizada.
“A ditadura busca explorar muito mais esse discurso porque ela inibe o debate racial, justamente para se colocar nessa contraposição americana. Mas isso cai por terra quando Florestan Fernandes é convidado a fazer um estudo na ONU sobre como o Brasil poderia servir de exemplo para outras nações que sofreriam com esse problema de leis segregacionistas, e Florestan traz esse denúncia de que, na verdade, o Brasil não tem nada para ensinar e nem o debate é possível durante os anos de ditadura”, conta.
O relatório final da Comissão Nacional da Verdade revela que, entre 1964 e 1985, 434 pessoas foram mortas ou desapareceram por motivos políticos, enquanto 8,3 mil indígenas também foram vítimas de massacres, remoções forçadas e torturas.
Essa realidade contraditória sublinha a complexidade e a brutalidade das violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar, onde esquadrões da morte, muitas vezes ligados às forças policiais de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, perpetraram execuções sumárias em subúrbios e periferias, sob a justificativa de combater o crime.
Manifestação durante a reunião da SBPC em 1981 – Foto de Juca Martins/Olhar Imagem
O Paraná viveu uma política de branqueamento, apagando a presença e as contribuições da população negra em sua história oficial.
“Quanto mais ao sul, mais complicado fica esse processo de discutir o racismo e o reflexo do pensamento racial brasieliro”, afirma Ivan Luiz Monteiro, pesquisador do Instituto Afro-Brasil do Paraná e Cidade Smart.
Para entender o movimento negro no estado, é essencial reconhecer que as manifestações culturais e materiais dessa população foram historicamente ignoradas pela historiografia do estado. Essa exclusão resultou na invisibilidade dos grupos menos favorecidos, como a população negra, na memória social do Paraná.
“A política de branqueamento foi um projeto de nação, os políticos brasileiros acreditavam que o Brasil só sairia do atraso se tivesse a mão de obra civilizada através do povo europeu”, afirma Ivan. “O estado divulgava um discurso de que não haveria presença da população negra para atrair imigrantes. A presença histórica da população negra no Sul é indiscutivel, mas no discurso hegemonico é como se nós quase não existíssemos”, diz o pesquisador.
O governo do Paraná utilizou dois argumentos principais para atrair imigrantes europeus: a baixa presença da população negra no estado, diferenciando-o de estados como São Paulo e Rio de Janeiro, que mantinham uma significativa presença negra mesmo após a abolição. Essa estratégia se inseria em uma política de memória estatal que contribuiu para a invisibilidade dos afro-brasileiros na região. Dessa forma, além do racismo estrutural presente em todo o Brasil, a população negra no Paraná enfrentou um racismo incentivado pelo próprio Estado.
A identidade de um grupo se constrói através de sua memória coletiva. No Paraná, a gestão dessa memória foi influenciada pelo “paranismo”, que reforçava uma identidade paranaense baseada nos imigrantes europeus que chegaram na segunda metade do século XIX. Essa política de memória, muitas vezes promovida pelo governo e respaldada por uma literatura historiográfica, minimizou ou apagou a presença negra da história oficial do estado.
“No Paraná não tivemos grandes lideranças públicas do movimento negro, acredito que de alguma maneira não dar uma cara para esse movimento fez com que ele continuasse existindo com uma chance de menor represália, porque não havia um rosto para capturar. Porém, com uma efetividade não tão puljante como nos demais estados”, afirma Ivan.
Vladimir de França, sociólogo, foi um jovem engajado no movimento de consciência negra durante os anos do regime militar. Participava ativamente de reuniões em espaços universitários, estudava na Universidade Católica e se destacava no movimento estudantil, atuando em centros acadêmicos e no Diretório Central dos Estudantes (DCE). “Cada congresso que tinha, a gente levava nossas propostas de denúncia de perseguição à questão racial, tentávamos ocupar todos os espaços”, relembra.
Mesmo sob a criminalização, movimentos e partidos de esquerda se mantiveram organizados na clandestinidade, promovendo debates e ações estratégicas contra o regime. No entanto, os ativistas negros enfrentavam dificuldades para colocar a questão racial na pauta dessas lutas.
Como líder do DCE, Vladimir conseguia abordar a questão racial nas universidades, produzindo panfletos, jornais e promovendo denúncias. “Era difícil no estado do Paraná, hoje ainda é difícil, imagina então naquela época quando você tinha uma população universitária praticamente branca”, comenta. “Nós éramos minoria e fazíamos intervenções nos congressos ou em praças sobre racismo, opressão e prisões ilegais. Abrimos espaços na força mesmo, porque eles não abriam espaço.”
Na sua turma de sociologia, com 45 alunos, apenas dois eram negros. “Denunciamos várias vezes o mito da democracia racial. Como pode haver democracia racial sendo que 80% dos estudantes são brancos?”, questiona.
“A partir de 1975, quando a repressão se intensificou, alguns amigos foram presos e fichados. A polícia não só prendia como batia, principalmente quando participávamos com nossas faixas de ‘fora racismo’ nos comícios das Diretas Já. Aí sim, apanhamos muito”, relembra.
Vladimir também destaca a repressão nas periferias de Curitiba, especialmente nos bairros de Pinheirinho e Cidade Industrial de Curitiba (CIC). “A perseguição nas periferias era brutal, principalmente contra os jovens negros”, diz. “Tinha uma polícia chamada de ronda, e o negro, antes de chegar em casa, era revistado, levava tapa na cara, era humilhado. E eles iriam gritar para quem? Os estudantes da classe média tinham uma proteção, mas os da periferia não.”
As pessoas, ao voltarem do trabalho, temiam encontrar a ronda e serem submetidas a revistas e agressões. “Mas, mesmo com muito medo e sacrifício, alguns jovens e estudantes negros conseguiam participar das nossas reuniões e encontros”, afirma Vladimir.
Para ele, o estado não apenas apagou, mas também branqueou a cultura negra. “O estado apagou toda a luta e garra e o processo revolucionário do negro no Paraná”, diz ele. “Nós estamos escrevendo nossa história agora, antes quem escrevia sobre a escravidão e a história dos negros eram os brancos”.
Almira Maria Maciel, militante histórica do Movimento Negro Unificado (MNU), hoje com 76 anos, relembra sua juventude no Instituto de Educação do Paraná. Ela descreve como a violência se manifestava em todos os espaços. “Tivemos alguns colegas que, após panfletarem ao sair da aula, desapareceram. Décadas depois, ainda não temos notícias deles. Foi nesse momento que começamos a entender a gravidade do que estava acontecendo”, lembra.
Nos anos 60, Almira diz que não compreendia completamente a situação. “Os militares negavam a repressão, alegando que cada ação era para libertar o Brasil. A forma como éramos tratados na escola era muito autoritária, algo que só entendi mais tarde”, conta.
“Éramos obrigados a usar sapatos de estilo militar, que precisavam ser engraxados todos os dias. Eles machucavam muito, mas eram obrigatórios. Aquilo foi o prenúncio da ditadura”, recorda.
Na década de 70, Almira começou a participar de grupos de reflexão e formação política promovidos pela Igreja Católica. “Eu morava na periferia e éramos convidados a participar dessas reuniões. Já trabalhava como professora na rede municipal e comecei a participar dos debates”, relata.
Com o tempo, Almira passou a analisar suas próprias experiências e percebeu diversas ações preconceituosas. “Esses debates mostraram que havia uma clara diferenciação entre pessoas brancas e negras na cidade. Em Curitiba, a repressão era mais intensa com a população negra, pois ao negar o racismo, viviam o racismo em suas subjetividades”, afirma.
Ela menciona a dificuldade de abordar questões raciais nos cursos de formação política e a política de apagamento das pessoas negras no Paraná. “Mesmo nos espaços de debate, quando apontávamos a necessidade de discutir pautas raciais, diziam que não precisava, pois não existiam negros no estado”, diz ela.
Anos após a ditadura, Almira lembra que o MNU recebeu a visita de três pessoas de quilombos do estado, que relataram suas lutas e torturas sofridas no regime militar. “Em 2005, formamos o grupo Clóvis Moura para mapear os quilombos no Paraná e desmontar a ideia de que não havia negros no estado. Somos o maior percentual de população afrodescendente do Sul do Brasil”, afirma.
Crianças da comunidade Itamatatiua – Foto: Paulo Hebmüller/AmReal
Durante o regime militar no Paraná, muitas comunidades quilombolas enfrentaram a expropriação de suas terras para abrir caminho às políticas agrícolas e extrativistas dos militares. Essas comunidades, que se formaram a partir de diferentes trajetórias, desde a fuga da escravidão até a herança de terras pós-abolição, foram frequentemente alvos de perseguições e ações de expropriação por parte do governo e de interesses privados.
As políticas de “segurança nacional” durante o regime militar incluíram a implementação de empreendimentos agrícolas que impactaram significativamente as comunidades quilombolas no Vale do Ribeira. Essa região, com sua vasta área de Mata Atlântica, foi alvo de regularização fundiária e operações de segurança devido à sua associação com a resistência contra a ditadura, como foi o caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) liderada por Carlos Lamarca.
A instalação de empreendimentos na Bacia do Rio Ribeira visava reforçar a presença estatal em uma região vista como território inexplorado. Tanto no lado paulista quanto no paranaense do Vale do Ribeira, programas de desenvolvimento impactaram os territórios quilombolas. Essas iniciativas incluíam procedimentos de regularização fundiária que ignoravam o uso comunitário das terras, incentivos fiscais ao reflorestamento e a criação de Unidades de Conservação.
Um exemplo claro desses impactos foi a regularização fundiária promovida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na década de 1970, em terras do quilombo João Surá, em Adrianópolis. Quilombolas relataram que o Incra desconsiderou o uso familiar e a mobilidade do grupo, resultando em expropriações injustas.
“Eles vieram medindo. Para mim ninguém perguntou nada. Eles mediram e entregaram. Sem perguntar. Daí que eu pedi que me desse um lote. Os outros moradores saíram, outros morreram. E daí a terra ficou vazia. Os que saíram não ganharam terra”, relatou um morador à Comissão da Verdade do Paraná.
Outra política que contribuiu para a expropriação foi o incentivo fiscal ao reflorestamento, que atraiu investidores interessados em abater quantias dos impostos ou acessar empréstimos para seus projetos. Esse incentivo resultou na grilagem e expropriação de territórios quilombolas, como ocorreu na comunidade do Varzeão, em Doutor Ulysses.
Os relatos da Comissão da Verdade mostram como as políticas do regime militar intensificaram a marginalização social e a expropriação fundiária de camponeses negros, vítimas de um racismo institucional.
Os ativistas negros enfrentaram um processo de apagamento histórico durante a ditadura militar, dificultando a associação de suas lutas à resistência contra o regime. No entanto, muitas das conquistas da militância negra atual são frutos da resistência daquele período. Apesar dos avanços, as sequelas da ditadura ainda são evidentes e estruturantes na repressão e violência contra a população negra.
O ativismo negro obteve conquistas significativas, como a maior inserção nas universidades, a criminalização do racismo e a visibilização das pautas raciais. Contudo, o regime militar representou um grande retrocesso no debate racial e nas políticas públicas de reparação histórica e social. Um dos legados mais perversos da ditadura é o modelo de segurança pública vigente, com a polícia militar ainda promovendo uma “guerra” contra a juventude negra.
Vladimir de França destaca que outra consequência é a necessidade dos jovens negros de entrarem cedo no mercado de trabalho, o que intimida muitos em relação ao ensino superior. “A maioria da população negra está em emprego secundário. Uma das sequelas da repressão dentro de uma família negra é você ver apenas um ou dois universitários”, diz ele.
Para a população negra, os efeitos da ditadura ainda são sentidos nas ruas das periferias, na vigilância e repressão policial, e nos altos índices de letalidade. A tortura, o medo e a dor da perda continuam presentes, revelando que, para muitos, a ditadura militar ainda não acabou.
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