Com os vestígios do colonialismo, além do Brasil, oito países têm o português como língua oficial. Destes, seis são africanos (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe) e os outros dois são asiáticos (Timor-Leste e Macau [co-oficial junto ao mandarim]). Pensar a literatura em língua portuguesa é, portanto, se desprender das raízes dos clássicos brasileiros e, ainda mais, das que resgatam um histórico domínio europeu. Nesse cenário, a poesia africana enfrenta os mesmos desafios, como aborda Anamaria Filizola, doutora em Letras e professora aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR), no ensaio “Que literatura é essa?”, publicado na 20ª edição do jornal em fevereiro de 1989 e selecionado para o especial Nicolau nesta edição do Cândido. Filizola analisa os escritores e os textos africanos, encontrando a busca por uma identidade cultural que alinha outras perspectivas da língua portuguesa.
Dona de uma dicção própria e de uma história marcada por violências e preconceitos, a poesia africana — ainda que pequena — dialoga com seus compatriotas e se arma contra a dominação cultural, imposta ao longo dos anos por seus colonizadores. A professora Anamaria Filizola traz à tona, com este ensaio, poetas quase desconhecidos do nosso público e aborda questões como a existência ou não de uma nacionalidade literária. Revela ainda a busca de uma identidade cultural das literaturas produzidas nos países ditos “em vias de desenvolvimento”.
Falar de poesia africana, no geral, é querer empreender tarefa hercúlea, ou incorrer em falta por omissões graves. Da mesma forma, falar genericamente em poesia africana de expressão portuguesa é não dar conta das especificidades e peculiaridades das literaturas de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Ver‐ de, São Tomé e Príncipe.
Esses cinco países têm em comum um passado histórico de colônias portuguesas. Em conseqüência, o domínio da língua portuguesa (no duplo sentido de domínio: no de dominarem a língua portuguesa a ponto de produzirem uma literatura nessa língua; e no sentido de a língua do colonizador ter sido imposta como língua oficial, em detrimento das várias línguas locais).
Dada a natureza deste artigo, não entrarei em pormenores históricos, listas de nomes e datas, autores e livros. Tomarei estas literaturas como pretexto para que se pense e questione algumas questões instigantes, como a da marca da nacionalidade do texto e a função do escritor.
O ponto de partida para abordar a questão dà literatura nacional é a dos critérios usados para reconhecer as marcas da nacionalidade de uma literatura. Em outras palavras, como identificar a nacionalidade de um texto que circule hipoteticamente sem o nome de seu autor e∕ou de sua origem pátria?
Isto disse respeito à literatura brasileira, igualmente descendente da portuguesa, em regime colonialista também, embora em outros tempos e em diferentes condições. Leiam-se os prefácios de José de Alencar e lá está expressa a preocupação com as marcas da diferença: a língua brasileira, a presença da exótica natureza local (a necessitar de palavras novas para dar conta de tanta novidade), a presença do índio, a mestiçagem étnica, enfim, tudo que pudesse diferenciar o que era produzido aqui daquilo então produzido na ex-metrópole.
Consideram-se assim critérios geográficos, cronológicos (em geral as datas das independências das colônias), lingüísticos, históricos e ideológicos. Os dois primeiros são os menos variáveis — mas mesmo assim variam — e os demais ficam à mercê do ponto de vista, ora do produtor do texto, que pode ter ou não a preocupação de inserir seu texto numa série nacional, ora do leitor consumidor e ora do estudioso da literatura.
Se alguns critérios identificadores são passíveis de arbitrariedades, não implica que a solução esteja na afirmação da universalidade da arte. Nesta discussão não vale a afirmação de Fernando Pessoa, de que “minha pátria é a língua portuguesa”, porque o que está em jogo é justamente a questão da pátria (literatura nacional é, obviamente, literatura de uma nação que se quer reconhecer no texto).
Sem poder evitar essa discussão, contemporânea sua, e sem querer incorrer em posições prenhes de arbitrariedades ou relativizáveis pela História, Machado de Assis nos fala de um “instinto de nacionalidade”, muito bem praticado por ele mesmo.
A lição machadiana não esgota o problema que atravessou o modernismo com a antropofagia das vanguardas, o neo-realismo do regionalismo de 30, a busca do essencial poético da chamada geração de 45, e de tempos em tempos volta à cena com a crítica ao concretismo dos Campos∕Pignatari, tropicalismo, poesia marginal, romance-reportagem, etc., etc. Ora se está nas veredas da brasilidade, ora se está mais perto do outro, no afã de não perder o trem da História…
Conhecer as literaturas angolana, moçambicana, guineense, cabo-verdiana e santomense e os textos que as estudam e divulgam, é conhecer a história da busca dessa identidade que aparece nas linhas algumas vezes, nas entrelinhas em outras.
A tarefa de Sísifo das nações colonizadas é a busca da identidade. Ou porque se é formado dicotomicamente por duas identidades inconciliáveis em alguns pontos, ou porque se perdeu a que já se teve um dia.
Nós, brasileiros, cabemos no primeiro caso, dividido entre Europa e América (no contexto das colonizações inauguradas com o século XVI, vale ressaltar): tupy or not tupy, como sintetizou Oswald de Andrade.
Os países africanos de expressão portuguesa se encaixam no segundo caso: tiveram uma que lhes foi usurpada, lhes impuseram outra que não serviu, e agora, depois das independências políticas, mas desde a consciência política, empreendem a busca de um novo rosto.
A literatura que reflete esta consciência da dominação é a que é considerada, por enquanto, a literatura nacional. Esta é a nação que se quer ler: a que resistiu, lutou contra, e agora luta por construir. Há que se considerar, a par da dominação, a oralidade em que se baseiam as culturas originais e o estigma da cor negra, ambas provocadoras de preconceitos bastante antigos e que sem dúvida serviram para justificar todo tipo de expropriação, entre eles o tráfico escravagista e posteriormente a empresa colonialista.
Assim, os escritores, ao produzirem textos em português, se voltam para um público bastante peculiar: seus compatriotas, i.e., aqueles que como eles se alfabetizaram, e os leitores de língua portuguesa em geral, potencialmente cúmplices do desejo dessa busca da identidade. A maioria da população desses países, consumidores virtuais de uma literatura em língua vernácula, é analfabeta.
Num mundo em que a linguagem escrita é amplamente prestigiada, aquele que a domina toma-se também privilegiado. Daí, talvez a razão de os poetas se sentirem investidos de uma missão para com a coletividade.
Vejamos o texto de Ovídio Martins, cabo-verdiano, pertencente ao período da luta armada pela libertação:
Silêncio Cabo-verdianos!
Choram irmãos nossos
nas roças de São Tomé
E há perigos e ameaças
na noite
grávida de punhais
Prepara o braço
serviçal!
Dos olhos do poeta
rolam lágrimas
cor de sangue.
A mensagem do texto dispensa comentários, dada a sua clareza de intenções, mas chamo atenção para os vocativos que aparecem no poema: “cabo-verdianos” (generalizados) e “serviçal” (particularizado); toma-se imperativo o silêncio de todos para que se ouça o lamento, o choro dos irmãos nas roças de São Tomé — serviçais também. Ao mesmo tempo que exorta à luta, o poema adverte sobre os “perigos na noite grávida de punhais” — tempo que antecede a manhã, a luz, a luta armada. O olhar do poeta abarca a realidade na sua totalidade, daí a necessidade∕legitimidade de sua voz ser ouvida. A visão do que lhe é revelado, extremamente dolorosa, causa as “lágrimas cor de sangue”, diferentes, portanto, daquelas choradas por todos e por motivos quaisquer.
Esta literatura é singular, os poetas têm consciência disso, como atesta o poema de Agostinho Neto, angolano, intitulado “Para além da poesia”:
Lá no horizonte
a fogo
e as silhuetas escuras dos embondeiras
de braços erguidos
No ar o cheiro verde das palmeiras queimadas
Poesia africana
Na estrada
a fila de carregadores bailundos
gemendo sob o peso da crueira
No quarto
a mulatinha de olhos meigos
retocando o rosto com rouge e pó-de-arroz
A mulher debaixo dos panos fartos remexe as ancas
Na cama o homem insone pensando
em comprar garfos e facas para comer à mesa
No céu o reflexo do fogo
e as silhuetas dos homens negros batucando
No ar a melodia quente das manmbas
E na estrada os carregadores
no quarto a mulatinha
na cama o homem insone
O braseiro consumindo
consumindo
a terra quente dos horizontes em fogo.
Não há explicitação do que seja “a poesia” em si, mas “para além da poesia” está a realidade do cotidiano da vaidosa “mulatinha de olhos meigos”, do “homem insone”, mais os embondeiros ao fundo e a “melodia quente das marimbas”, realidades diversas mas concomitantes. Esta a poesia africana; o refrão reitera a idéia. Esta a poesia africana, e não a comumente lida. Não se pode ficar apenas no “poético”, seja lá o que possa ser, expressão de um lirismo amoroso ou metafísico, busca de experimentalismos formais.
A poesia africana radica na realidade; não se espere mais do que isso, se desculpa Hélder Proença, da Guiné-Bissau:
É doloroso dizer…
Mas não tivemos tempo de respirar
o hálito das manhãs sonhadas.
O plural da primeira pessoa irmana todos os poetas que, como ele, não se permitem “respirar o hálito das manhãs sonhadas”. Hélder Proença, ao contrário de Agostinho Neto, nomeia a poesia que fica fora do texto: o inefável (o hálito da manhã) e o sonho ou desejo. Mas o poema traz um elemento novo com relação aos outros dois: o tempo, que ainda não houve para este lirismo.
Este realismo, que não dá lugar a maiores divagações, tem que dar conta do que é a Angola ou São Tomé e Príncipe, ou do que é ser cabo-verdiano ou moçambicano. Tem que dar conta da expropriação de tudo e todos que houve em passado mais ou menos recente, como mostra este fragmento, de autoria de Marcelino dos Santos, moçambicano:
(…)
Perdoa ó meu pais a Adamastor
se ele não soube
deflagrar o furacão
e arrastar para o fundo dos mares
as caravelas européias
Perdoa ó meu país
às conchas e aos búzios da praia
se não souberam anunciar
o fogo
a peste
e o chicote
que a História
quis gravar
nas páginas da tua história
É interessante notar o diálogo que o poema faz com Os Lusíadas, episódio do Adamastor; em primeiro lugar, por ser o poema da nacionalidade portuguesa, que narra ao mundo, através de um diálogo com o rei D. Sebastião, as façanhas dos portugueses ao longo da história, culminando na conquista do caminho para as Índias; é a louvação da dominação, do ponto de vista do dominador, claro. Adamastor, figura fantástica criada por Camões, alegoriza a natureza sendo vencida pelos lusitanos; é o Cabo das Tormentas, o Fim do Mar, o Medo.
No poema de Marcelino dos Santos, Adamastor é acusado de ter falhado na sua função de amedrontar e afastar os europeus que vieram após os portugueses, trazendo a peste, o fogo, a morte, a não-África.
Aliás, existem poemas que dialogam com outros textos poéticos, brasileiros também, mas invertendo o significado de seu simbolismo, numa subversão com rendimentos para a africanidade, como é o caso deste poema de Ovídio Martins, cabo-verdiano, intitulado “Antievasão”:
Pedirei
Suplicarei
Chorarei
Não vou para Pasárgada
Atirar-me-ei ao chão
e prenderei nas mãos convulsas
ervas e pedras de sangue
Gritarei
Berrarei
Matarei
Não vou para Pasárgada.
.
A edênica Pasárgada de Manuel Bandeira, espaço do desejo por excelência, é negado em nome da realidade local do arquipélago, concreta, com toda a aridez que leva muitos a se evadirem, literalmente, em busca de melhores condições de vida alhures. A evasão, tanto a da poesia como aquela por que muitos optam, é negada. Há que se ficar com as “ervas e pedras de sangue”.
A expectativa por parte da crítica literária mais progressista também não é outra, como se pode ver neste trecho de J.L. Pires Laranjeira, português, estudioso de‐ dicado das literaturas africanas, que ele, como alguns outros críticos, denomina de “literatura calibanesca”, numa alusão a Caliban, personagem shakespeareano da tragédia Tempest (Caliban é um canibal civilizado que acaba por expulsar da ilha em que vive a pessoa que o “civilizara”):
“(…) Estas questões, relacionadas com a essência nacional, podem ainda parecer pouco importantes quando se toma em consideração, por exemplo, um Uanhenga Xitu: é negro, nascido em Angola, aí foi educado e combateu o colonialismo; escreve em português amplamente incursionado de quimbundo; evidencia uma cultura retintamente oral e ancestral, bebida de fontes populares, com sua graça e malícia, seus aforismos, suas deambulações lengalengadas, seu ritmo astral e terráqueo, síncrono com tempos campestres, sem construtivismo ou vanguardismo de linguagem, sem simbolismos universalistas que os próprios do muntu em conflito com os do mundo (O Ocidente, o Colonialismo, a repressão, a negação do ser e do estar). Ele prefere, inclusive, assinar com o nome de nascimento, Uanhenga Xitu, em vez do de baptismo de aculturado, Agostinho Mendes de Carvalho. As suas “fotografias de autor”, publicadas em Portugal nos livros das Edições 70, mostram-no de boina com insígnia, sem qualquer espécie de dandismo ou pose artística em retratos perfeitamente cotidianos. Não restam dúvidas de que Uanhenga Xitu é escritor angolano.”
Os critérios de Pires Laranjeira para identificar a “essência nacional”, neste caso, são os de uma realidade social que pode ser conferida no texto (a oralidade, as expressões crioulas, as fontes populares, sem maiores reelaborações de linguagens ou de imagens simbólicas); na biografia do autor (educação angolana, participação na luta contra o colonialismo) e mesmo na sua aparência física, que não copia modelos estereotipados.
Que outras pátrias poderão aparecer nestas literaturas calibanescas, por ora, só o tempo poderá nos dizer. Estas literaturas passam até por um certo recesso de produção, pois a maioria dos escritores participam ativamente dos atuais governos, assumindo cargos de relevância. Mas com certeza está-se longe de poder dizer, como Ricardo Reis∕Fernando Pessoa: “Prefiro rosas, meu amor, à Pátria”.
É relativamente recente a preocupação em torno da função da literatura e do papel do escritor na sociedade. Camões, no Renascimento, nunca teve essa preocupação: “Numa mão a espada, a outra às musas da‐ da”. Ou seja, não havia confusão entre soldado, com a espada, a serviço do rei, e a sua produção literária, fruto de engenho e arte, inspirados pelas musas.
No entanto, hoje esta questão aparece. Se não se pode escolher nascer com a inspiração de um Camões ou de um Fernando Pessoa, nem se pode escolher o momento histórico que se vive, com certeza se pode escolher o posicionamento ideológico. Daí a delicadeza com que se tem que percorrer tal terreno, uma vez que se esbarra sempre em subjetividades: do autor, do leitor, do crítico.
Na atual conjuntura das literaturas africanas de expressão portuguesa, tem havido um consenso em tomo do que deve fazer o escritor calibanês: pensar a sua realidade criticamente (de maneira calibanesca), explicitar essa reflexão no seu texto, visando transformações calibanescas no seu meio, se impondo no mundo de maneira calibanesca.
Obviamente, como se pôde perceber até aqui, a leitura calibanesca, todavia, se confere no contexto. Se se for ler os textos, tanto prosa como poesia. com uma expectativa imanentista, quer dizer, esperando que o texto traga consigo toda a sua carga de significação, pode-se correr o risco de um entendimento equivocado. É preciso aprender a ler a Angola, o Cabo Verde, a Guiné-Bissau, o Moçambique, o São Tomé e Príncipe… Ou atrever-se a resultados literalmente surrealistas.
O acesso a essa literatura não é impossível, mas não é dos mais fáceis. Ou se tem edições portuguesas, raras, de autores individuais, ou se tem a coleção da editora Ática brasileira, que conta em sua seleção apenas um livro de poemas: Sagrada esperança, de Agostinho Neto; ou então conta-se com as antologias, que sempre dão uma visão panorâmica, com critérios, ou cronológico, ou biográfico, ou geográfico, ou temático. Há a famosa Antologia temática da poesia africana (portuguesa), em dois volumes, organizada por Mário de Andrade, datada de meados de 70, e mais recentemente a antologia organizada por Cremilda de Araújo Medina, editada no Brasil: Sonha mamana África. Por mais parciais e pessoais que possam ser tais amostragens, são sempre uma fonte útil e interessante de abordagem desse mundo desconhecido pela maioria de nós.
Para terminar, deixo o leitor com um poema de Francisco Delgado, que retirei da antologia Literatura portuguesa em curso, organizada por Dirce Riedel et alii; publicada em 1975, mas trabalhada antes das independências. A profª. Dirce retirou o poema de uma outra: Antologia da poesia universitária (portuguesa). O livro de Dirce Riedel, de objetivos didáticos, organiza os textos por temas, mas nada diz dos autores, alguns por demais conhecidos, outros totalmente desconhecidos, como é o caso de Francisco Delgado, do qual consta ser apenas de Luanda, Angola. Nada mais encontrei desse poeta nos outros livros que consultei. Nada sei sobre ele, se ficou para sempre em Portugal, se lutou contra o colonialismo, se morreu na guerrilha, se nunca mais escreveu. Como o leitor verá, não há indícios explícitos de calibanismo. Será literatura angolana? O que nos diz o texto sem o contexto?
Onde estavas, amor que não te vi?
Eram cavalos-nevoeiro que montavas
por entre as brisas redondas.
Eram gritos de negro que escondias
nos soluços de sombras.
Eram horizontes que temias
nas noites despidas de sonatas.
Eram marés de turbilhão que repelias
no labirinto do vento.
Eram cortinas de aranha que corrias
no lamento .
dos desfiladeiros inconcretos.
Eram cinzentas cruzes que erguias
em suspiros secretos.
E eu sem te ver, amor, e tu tão perto!
Era um mundo-jardim
cigano e aberto
desabrochando em teu regaço de silêncio:
água corrente em desprender de lamas,
caudal de labaredas emboscadas,
faróis da noite em chamas,
madrugadas.
Que longínquo país te habitava,
que nevoeiro imenso te escondia,
que febre de queimar te delirava,
que tu estavas tão perto e te não via?
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