Lei sancionada no final de julho criou o Dia Nacional do Funk, que será celebrado no dia 12 de julho – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Mídia NINJA/Flickr/CC-BY-NC, Marco Gomes/Flickr/CC BY-NC-SA 2.0 e Reprodução/Gerador de fontes
O funk está por toda parte. Dos bailes de favela aos casamentos, festas universitárias e grandes festivais. Neste ano, esteve até mesmo nos Jogos Olímpicos de Paris: a ginasta Rebeca Andrade apresentou o solo que levou a medalha de ouro ao som do Movimento da Sanfoninha, de Anitta, e do Baile de Favela, do MC João. Recentemente o funk ganhou até mesmo um dia nacional, que será comemorado todo dia 12 de julho. Apesar de ser tão presente no cotidiano dos brasileiros, esse estilo musical passa longe dos conservatórios e universidades. Professor de música clássica e funkeiro, o músico Thiago de Souza quer mudar esse cenário. Em sua tese de doutorado, ele propõe uma teoria musical que dê conta de analisar o funk como uma música eletrônica da diáspora africana. O músico acaba de defender a tese na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
“Toda teoria costuma vir de uma prática. Essa teoria tradicional que a gente tem, ela vem da prática da música de concerto europeia, instrumental. O funk não é nada disso. O funk é uma música eletrônica dançante afrodiaspórica. Então, é pensar uma forma de análise musical que dê conta desse fenômeno. E, ao mesmo tempo, buscar fazer uma crítica da universidade, porque esse tipo de repertório historicamente sempre foi deslegitimado. O funk [serve como] como modelo de toda a música marginal, preta, periférica que ficava de fora e ainda fica de fora das universidades e dos espaços de ensino musical”, explica Thiagson, como é conhecido nas redes sociais.
O pesquisador mantém nas plataformas sociais o Canal do Thiagson, onde posta vídeos sobre temas como música, educação, racismo e preconceito linguístico. Com 142 mil seguidores no Instagram, seus vídeos já chamaram a atenção de jornalistas e editores. Em 2023, Thiagson publicou o livro Tudo o que você sempre quis saber sobre funk… mas tinha medo de perguntar pela editora Tipografia Musical. O livro reúne reflexões sobre diversas questões relacionadas ao funk. São temas como as aproximações com a música clássica, o preconceito contra a música popular e a formação social do gosto musical. Também comenta polêmicas envolvendo as letras explícitas de muitos funks e os mitos no imaginário coletivo quando o assunto é o baile. São reflexões que estão também presentes nos vídeos do canal.
Para Thiagson, o preconceito contra o funk está umbilicalmente ligado ao fato de ser “som de preto, de favelado”, como cantaram MC Amilcka e Chocolate. Uma história que já se passou com outras expressões da cultura popular, incluindo o samba e a capoeira, e agora se repete.
Thiago de Souza mantém nas redes sociais o Canal do Thiagson, onde fala sobre música, educação e enfrentamento ao racismo – Foto: canaldothiagson/Instagram
Quando se fala de suas origens, é comum lembrar do funk estadunidense de James Brown e Sly & The Family Stone. Mas o que ficou conhecido como funk carioca tem muito pouco a ver com o funk daqueles artistas. O que ambos guardam em comum é a consciência racial, que também está presente no rap, por exemplo.
“O que existe de continuidade do James Brown é a música preta periférica usada de uma maneira política. Isso está no James Brown e está no nosso funk atualmente. Mas a coisa foi se transformando. Nosso funk é uma música eletrônica. Sempre foi produzida com meios eletrônicos, que vêm do hip hop”, explica Thiagson.
Portanto, assim como o rap, o funk é um estilo musical que faz parte da cultura hip hop. Não à toa, os funks mais antigos eram chamados de raps – um clássico é o Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, lançado em 1995.
O funk atual compartilha com o rap a mesma cultura do jogo entre o DJ e o mestre de cerimônias. Thiagson lembra que o hip hop norte-americano da década de 1980 tinha, além do rap, vertentes musicais mais dançantes. Uma delas era o electrofunk de Los Angeles, de onde saiu a batida dos primeiros funks cariocas: era o Volt Mix, produzido em 1988 pelo DJ Battery Brain. “É uma das primeiras batidas usadas aqui logo que o funk começou a ser produzido no Brasil do final dos anos 80. O primeiro disco de funk produzido em português, produzido no Brasil, é o LP DJ Marlboro apresenta Funk Brasil. Mas havia já, por exemplo, a Furacão 2000, que lançava vários CDs com coletâneas dessas músicas americanas há bastante tempo”, diz o pesquisador.
O gênero é uma das várias expressões musicais dançantes da diáspora africana nas Américas. Figura ao lado do Miami bass da costa leste dos Estados Unidos, do reggaeton latino-americano e do brega-funk do Nordeste do Brasil. Também tem muito diálogo com o kuduro e o afrobeat. “Tem muitos musicólogos que defendem que essa clave rítmica do funk, esse tum tchá tchá tchá tchá tchá tchá, esses mesmos ataques, esse mesmo ritmo, vem dessa costa oeste africana”, afirma Thiagson.
Dentro do universo do funk, há estilos, estéticas e formas de produzir diversas. Há também uma certa disputa entre os DJs para emplacar uma nova onda e se diferenciar dos demais. Tem o funk consciente, com letras mais voltadas às questões sociais enfrentadas pelos moradores das periferias brasileiras. Tem o trap-funk, que é mais rasteiro, com uma batida mais lenta, e o funk 150 bpm, mais acelerado. Nos bailes de favela de São Paulo, o mandelão é o estilo que comanda a festa. Dentro do mandelão, existem subdivisões, como o automotivo e o bruxaria. Este último adota uma estética que faz referência aos filmes de terror e letras que falam despudoradamente de sexo.
“É uma música muito voltada para os bailes de favela. Baile do Helipa, por exemplo. A produção sonora tem sons extremamente graves e sons extremamente agudos, distorcidos também. O ritmo do bruxaria é aquele bate-estaca da música eletrônica, bum bum bum bum bum, não é aquele tum tchá tchá tchá tum chá que a gente está acostumado”, diz Thiagson, mencionando o famoso baile realizado em Heliópolis, na zona sul de São Paulo. “Os funks de baile de favela também têm uma outra característica que é a baixa qualidade de amostragem do som. Às vezes, o MC canta de casa, no próprio WhatsApp, e manda para o DJ. Então não vai sair aquele áudio maravilhoso… E tudo bem. A arte ensina que você não precisa ter grandes meios e equipamentos caros para fazer a música cumprir a sua função de comoção social”, completa.
Ele destaca que essa produção em rede é o que possibilita o intercâmbio de várias quebradas. Existem também diferenças regionais. Enquanto o funk de São Paulo tem uma produção mais crua, o funk do Rio de Janeiro é mais ritmado. Já o de Minas Gerais costuma ser mais bem produzido, seguindo as regras do mainstream musical.
O trabalho de valorização do funk como expressão cultural negra periférica e a crítica ao elitismo da academia deram a Thiagson muitos seguidores, mas também muitos adversários e detratores. Thiagson não é exatamente uma unanimidade entre os músicos e, como pesquisador, tem passado mais tempo fora dos muros da Universidade do que dentro. Nascido no sertão da Bahia, ele cresceu entre Juazeiro e Santo André, no ABC Paulista, e se reivindica como um sujeito periférico.
“Tive muita vergonha de ser pobre, da minha origem, quando eu entrei nesse ambiente de ensino de música clássica. Não que as pessoas sejam ricas, mas existe uma cultura elitista que faz com que a gente se envergonhe da nossa condição”, lembra. “Eu via os professores falando assim, ‘mas com cinco anos eu tocava piano e ouvia Brahms’, e eu pensando que com cinco anos eu estava rebolando na boquinha da garrafa, estava ouvindo toda a convulsão da cultura periférica, e me envergonhava disso”, completa.
Orientado pelo professor Walter Garcia, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, Thiagson desenvolveu sua tese de doutorado na área de musicologia. Ele diz que muita gente poderia classificar seu trabalho como etnográfico, pois tem ido a campo para conhecer a produção do funk em São Paulo e em outros estados.
“Acho que eu não estou muito na academia, não estou muito na universidade. Estou mais no funk, escrevendo e convivendo e conhecendo outros produtores e outros estados. Fui para Minas Gerais, fui para o Rio de Janeiro conhecer como é que se produz funk lá. Estou em contato com muita gente que produz e pensa o funk”, explica o pesquisador. “Muita coisa dessa minha pesquisa de campo para extração de dados e pensar nessa teoria é na verdade a minha própria vivência, né? Formalizando todas essas vivências, as pessoas que eu conheci, os DJs, produtores de música, as formas de pensamento musical que eu conheci. Tem um sentido de resgatar tudo aquilo que eu perdi quando eu estava estudando música clássica, tinha vergonha de ser pobre, tinha vergonha das minhas vivências”, dispara Thiagson.
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