. Como uma ilha entre as pessoas que se comprimiam no abrigo de bonde, o homem mantinha-se concentrado no seu serviço. Era especialista em colorir retrato e fazia caricatura em cinco minutos. No momento ele retocava uma foto de Getúlio Vargas, que mostrava um dos melhores sorrisos do presidente morto.
.
. Nem sequer a chegada do bonde fez o homem levantar a cabeça. Trabalhava variando de lápis calmamente, como se não tivesse nenhuma pressa ou mesmo não desejasse terminar o serviço. Getúlio na foto continuava sorrindo para o homem com um de seus melhores sorrisos.
. Uma mulher esturrada, de alpargata e vestido muito largo, aproximou-se e parou à sua frente. O homem levantou a cabeça:
. – Você, Maria.
. Ela moveu o rosto com dificuldade e fez o possível para sorrir, fixando atenta e profundamente a cara do homem.
. – Aconteceu alguma coisa?
. – Não – murmurou a mulher.
. O homem pôs a fotografia e o lápis na mesa e esperou que a mulher falasse. Olhavam-se como duas pessoas de intensa convivência.
. – Não houve mesmo nada? – tornou o homem.
. – Claro que não, Zé. Eu vim à toa.
. – E os meninos?
. – Mamãe está com eles.
. – Como é que você arranjou para chegar até aqui?
. – Uai, eu vim.
. – A pé? Você não devia ter vindo, Maria. Estou achando que houve alguma coisa.
. – Não teve nada, não. Mamãe chegou lá em casa e então eu aproveitei para dar um pulo até aqui.
. – Ah – o homem sorriu. E uma onda de carinho, quase imperceptível, assomou-lhe o rosto lento e sofrido.
. – Fez alguma coisa hoje, Zé?
. – Fiz um – respondeu levantando-se. – Senta aqui. Você deve estar cansada.
. A mulher sentou no tamborete, desajeitada.
. – Você não devia ter vindo, Maria – disse o homem.
. – Eu sei, mas me deu vontade. Mamãe ficou lá com os meninos.
. – Mas ela não estava doente?
. – Você sabe como mamãe é.
. – E o Tonhinho?
. – Está lá.
. – O carnegão saiu?
. A mulher fez sim com a cabeça e em seguida olhou para o abrigo, onde havia pequenas lojas de frutas, café, pastelaria.
. – Espera um pouquinho aí – disse o homem, e caminhou na direção de uma das lojas.
. A mulher permaneceu sentada no tamborete, observou por um momento o vendedor de agulhas, que continuava gritando, depois deteve a vista na foto de Getúlio Vargas sorrindo para os trabalhadores do Brasil. O homem reapareceu com um saquinho manchado de gordura.
. – Esses pastéis.
. – Oh, Zé, para que você fez isso?
. – Vamos, come um.
. – Você não devia ter comprado.
. – Vamos.
. A mulher retirou um pastelzinho do saco e começou a mastigá-lo com muito prazer.
. – Come o outro, Zé.
. – Já comi uns dois hoje. Esse outro também é seu.
. – Então eu vou levar ele pros meninos.
. – É pior, Maria.
. O homem ficou de pé, ao lado da mulher, observando-a comer o segundo pastel. A mulher acabou de comer, limpou a boca na manga do vestido e fez menção de levantar-se:
. – Fica aqui, Zé. Pode aparecer alguém.
. – Não, eu passei a manhã toda assentado.
. A mulher sentada e o homem em pé conservaram-se silenciosos durante um breve e ao mesmo tempo longo momento, ora olhando um para o outro, ora cada um olhando as pessoas agora espalhadas no abrigo ou não olhando coisa nenhuma. A mulher se ergueu:
. – Acho que eu vou andando.
. – Já vai?
. – Mamãe não aguenta eles, você sabe.
. – Ah, é mesmo. Você não devia ter vindo.
. O homem tirou uma nota de dentro do bolso do paletó e estendeu-a para a mulher.
. – Volta de bonde.
. – Não, Zé.
. – É muito longe, criatura.
. – Não.
. – Ora, minha nega.
. – A mulher pegou o dinheiro com a mão indecisa.
. – Vou ver se levo.
. O homem assentiu com a cabeça, abriu a boca mas não disse nada. A mulher desviou o rosto e piscou os olhos várias vezes.
. – Não chega tarde não, viu, Zé.
. – Chego não.
. – Você vai fazer.
. – Hoje eu sei que vai melhorar.
. – Vai sim, Zé. Eu seu que vai. Eu sei.
. A mulher se afastou rapidamente, sem voltar o rosto. O homem empinou-se um pouco para vê-la atravessar a rua. Depois sentou no tamborete e pegou um lápis e o retrato.
. Durante muito tempo o homem permaneceu com a cabeça baixa, imóvel dentro de sua ilha, curvado sobre a foto que mostrava o presidente morto com aquele sorriso de seus melhores dias. (FIM)
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