O alarido das crianças – no meu bairro acinzentado pela chuva da tarde, quinta-feira, hora desusada dos chás antigos do tempo dos pães queimados a ponto de estalo com carvões de pinho. As terríveis crianças que gritam – como se fossem uma só goela – o crescente clamor que sobe a rua estreita despertando outras vozes na memória das pedras, na hera, no tronco encantado dos cinamomos. Sei que me perseguem. Reclamam a lenta exposição dos meus ossos na calçada, um a um, morte ao dragão do fim rua. O grito é aviso: em breve cairei de borco no patamar e elas sapatearão sobre minha grande língua cor-de-rosa, à procura de um e outro selo que ficará incrustado, esquecido, das cartas de socorro não remetidas. Tombarei, o dragão. Com pouca luta, visto que minha malignidade é agora infensa. Tombando, inapelavelmente, reconhecerei, com olhos semicerrados de réptil, as cornijas de tufo branco para onde os pombos levam meus dentes. Vou à janela, elas somem. mandam um cão me espionar, animal de gratas lembranças dos meus passeios de antes, mas que agora dissimula a traição cheirando os rastos invisíveis de outros cães. É puro acinte, percebo. Coma cauda dá em código, às crianças, a situação em que me encontro – digamos: sentado à janela, os óculos roídos em torno dos olhos, a cabeleira rala e longa, esbranquiçada, as minhas mãos patéticas. O cão finge e me aflige: denunciou-me às crianças, que se entreolham com sentenças malvadas na testa. Exterminar-me, sei bem, é o que querem. Também os pombos, com seus pequenos olhos citrinos. A dança vai começar. Fecho depressa as janelas e dispo-me. Nu, executo os passos do dragão: às cegas, pesadamente, rodopio pela sala, atirando ora uma perna ora outra, esperando que minhas ventas se incendeiem. Na passagem, agarro-me às borlas apodrecidas das cortinas e imagino-as crânios infantis que se partem. É o primeiro ato da captura. Seus gritos recomeçam e ouço o pisar descalço nas pedras fronteiras. As crianças voltam; uma, mais afoita, balança os galhos úmidos do cinamomo; as outras açulam os pombos. Aproveito a rápida trégua – enquanto preparam novo ataque – e ponho-me a ler um velho almanaque de farmácia. Espanto-me de sabê-lo quase de cor: a origem das crateras lunares, o inventor do cinematógrafo, a verdade sobre o monstro de Loch Ness (um dragão!): sou sábio, o que as crianças ignoram. Terminado, coloco-o sob um seixo cor de chumbo e corro a espioná-las pela fresta da janela. Em bando, na esquina, vejo-as batendo sobre latas e caixotes um canto funeral que deduzo ser para mim. Comove-me a cantilena. Choro e recorro ao crucifixo que encomendei para meu tumulo – grande, áspero, em cujos braços depósitos, de tempos em tempos, ritualmente, os dentes que perco. No meio da reza, que recito com voz sussurrante para que eu próprio não ouça, confiro o número de dentes: dou pela falta de dois, levados pelos pombos – culpa minha em deixar as janelas abertas. Em compensação, junto à base do crucifixo, um monte de pequenos ossos me dá uma temporal vantagem sobre os ladrões alados. Se as crianças não me destruírem antes, acabarei vencendo: trincarei, com as lascas rombóides que restam nas gengivas, as asas e as vértebras de todas as aves da rua. É a noite cúmplice, aliada única, na guerra que movo há anos contras as crianças e as aves. Recolhidas finalmente em suas casas e ninhos, experimento então na minha pele esverdeada e rugosa a úmida paz dos musgos. Projetado no espaço lunar, pela lanterna mágica, aproveito a trégua na companhia dos meus álgidos monstros de almanaque. Mas é curta a paz, breve o exílio. De manhã, após o voo reconhecedor dos pombos, elas voltarão: as crianças, contra mim, soprando bolas de goma.
_____________________________ Jamil Snege (1929-2003) nasceu em Curitiba, onde passou sua vida toda. Graduou-se em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escritor e publicitário, dividia seu tempo entre os livros e sua agência publicitária. Publicou crônicas, quinzenalmente, no Caderno G do jornal Gazeta do Povo . Escritor reconhecido pela classe literária, publicou, entre outros, O Jardim, a Tempestade (minicontos, 1989), Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo (memórias, 1994) e Os Verões da Grande Leitoa Branca (contos, 2000).O conto “A batalha de bolas de goma” foi extraido do livro “Assima escrevem os paranaenses”, 1978, Editora Alfa-Omega.
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