Dalton Trevisan (1925-2024)
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– Você raspou o bigode, João? Ficou mais moço.
– Na mesma hora em que ela me deixou. O amor é uma faca no coração. Cada dia se enterra mais fundo, que não deixe de sangrar.
– Esse óculo rachado. Não pode enxergar direito.
– Depois a gente acostuma, não atrapalha tanto.
– Maria, ela não merece você. É bom demais. E os filhos?
– A mais velha me odeia. Dizer que me chamava Paizinho.
– No começo eles tomam o partido da mãe.
– Ao encontrá-la na rua, me virou o rosto: Você é uma filha ingrata. Nada de ingrata. Nem considero o senhor meu pai. Então a culpada foi sua mãe… Sabe o que ela fez? Quis me avançar com a unha afiada.
– A outra filhinha?
– Também do lado da mãe.
– E o filho?
– Esse é o maior inimigo.
– Você, João, uma infância tão feliz. Agora sofrendo esse horror. Dona Cotinha teve a felicidade de não ver.
– Se ela está vendo… Tudo!
– Vendo o quê?
– É espírito forte. Tudo ela vê. Fala comigo em sonho. Sabe o que repete?
– …
– Meu filho, sinto uma pena de você!
– Ó Maria, mal de cada dia.
– Minha cama é só mordida de formiguinha ruiva. Usei tudo que é veneno. Até lavei o soalho. Mas não adiantou.
– É a famosa insônia de viúvo.
– Três da manhã, lá vem o negro desdentado, entra no quarto, deixa uma flor na minha testa.
– E quando você acorda, a flor está ali?
– Como é que adivinhou? Flor é do céu, não é? Quem manda é a velha: Vá cuidar do meu menino, tão sozinho.
– Deve arrumar uma companheira.
– Quem é que vai me querer?
– Quanta mulher, João. Uma viúva, uma desquitada infeliz, tanta professora bonitinha.
– Cada dia – são palavras da Maria – é mais difícil gostar de você.
– Mulher é que não falta.
– Tenho uma em vista. Viúva de trinta anos. Maria praguejou que sozinho não consigo outra.
– Deve mostrar para ela. Pode até escolher.
– Como é que você dobrou a Maria, assim furiosa? – perguntou a pobre velha, antes de morrer. Não dobrei a Maria, eu disse, dobrei os joelhos.
– Mudar a lente rachada não custa. Em vez dessa gravata fúnebre uma de bolinha azul.
– Nunca tomei um copo d’água sem dar a metade para ela, que no fim me fugiu. Na cama o cobertor era todo de Maria. Não tinha um fio e uma agulha para este botão?
– Bem sei que fazia pose para você. Logo ela!
– É refinada feiticeira. Coração comido de bichos, ela tem um buraco no peito. Sabe o que, no dia em que me abandonou?
– Só de traidora degolou o casal de garnisés…
– Nem tremeu a mão de unha dourada.
– … estrangulou o canário no arame da gaiola…
– Não me diga, João!
– … e furou o olho do peixinho vermelho.
– Esqueça a ingrata nos braços de outra.
– Não é feia a viúva. Trinta anos mais moça, apetitosa. Só eu não mereço?
– Assim é que se fala, João.
– Não posso ter dó de mim, daí estou perdido. Acho que me engracei pela viuvinha. O amor é uma corruíra no jardim – de repente ela canta e muda toda a paisagem.
Dalton Trevisan (1925-2024), escritor paranaense. Autor de livros como Cemitério de Elefantes, O vampiro de Curitiba, A polaquinha e O maníaco do olho verde, entre outros títulos. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, como o inglês, o espanhol e o italiano. Em 2012, Trevisan ganhou o prêmio Camões de literatura. Vivia em Curitiba (PR).
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