Duque (o primeiro da esquerda para a direita), Donga (o segundo), Pixinguinha (o quarto) e duas pessoas não identificadas, possivelmente no embarque dos Oito Batutas para Paris, em 1922 – Arquivo Pixinguinha/Acervo Instituto Moreira Salles
A mostra Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou, disponível no Instituto Moreira Salles com entrada gratuita na capital paulista, reconstrói a cena cultural da capital fluminense entre as décadas de 1910 e 1940 para contar uma “experiência de matriz africana disputando o sentido de brasilidade”, define a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, uma das curadoras da exposição.
Junto com a ela, a equipe é formada por Angélica Ferrarez, Luiz Antônio Simas e Vinícius Natal.
Autora de Racismo brasileiro (Todavia, 2022) e História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Ynaê Lopes do Santos é professora de história na Universidade Federal Fluminense (UFF). Embora o seu foco não seja o estudo sobre a origem do samba, a historiadora aceitou o convite do IMS com entusiasmo, principalmente, por conta de tudo que a manifestação cultural representa.
“O samba é uma disputa que a população negra faz de outros Brasis possíveis”, define em entrevista ao programa Bem Viver no último dia 22.
Ynaê Lopes dos Santos é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) / Divulgação
Segundo Santos, a construção da mostra foi para causar uma “porrada” no visitante.
“Começa sem ser muito simpático, porque a história do Brasil não é simpática, e é muito frequente que a história do samba seja utilizada para reforçar uma ideia da democracia racial, de uma história tranquila, no final tudo acaba em samba, mas para acabar em samba, teve que começar de algum lugar, e a gente quis trazer esse começo, que é a história da escravidão, e uma história da escravidão negra do Brasil”.
A mostra está dividida em dois andares e reúne aproximadamente 380 itens, entre documentos, gravações musicais, fotografias, matérias de jornais, filmes e obras de arte, provenientes do acervo do IMS e de outras instituições.
A mostra faz alusão ao termo “Pequena África”, cunhado pelo artista Heitor dos Prazeres para se referir à região da Zona Portuária do Rio, que, no começo do século 20, concentrava uma numerosa população afrodescendente.
Cais do Valongo é tido como o maior porto escravista da história, tendo recebido cerca de 1 milhão de africanos vindos forçados para o Rio de Janeiro.
Ynaê Lopes dos Santos lembra que a “história do samba precisa ser relacionada com a história do trabalho no Brasil”. A estudiosa argumenta que os assuntos se conectam “seja [pela história] dos trabalhadores escravizados, livres libertos e também dos próprios sambistas”.
Bloco Cacique de Ramos no carnaval de 1966, no Rio de Janeiro / Acervo FMIS/RJ
“Porque ainda hoje temos também essa mácula, essa ideia equivocada de que samba é quase coisa de vagabundo, né? Que samba não é trabalho, que samba é só lazer”, argumenta a historiadora.
Segundo ela, foi para combater este estigma, que ainda na década de 1930, Paulo da Portela, um dos fundadores da escola de samba Portela, implementou o costume de os sambistas andarem sempre bem vestidos, de paletó, sapatos e chapéu.
“Olha que eu sou paulista”, brinca Ynaê Lopes dos Santos ao comentar que São Paulo roubou indevidamente os holofotes do Rio de Janeiro, principalmente, na década de 1920, como centro cultural do país.
Ela faz referência a Semana de Arte Moderna, que aconteceu em 1922, e pôs uma elite branca paulistana como exemplo deste “sequestro”.
Neste mesmo ano, Os Oito Batutas, grupo de samba liderado por Pixinguinha, Donga e João da Baiana, chegava em Paris para fazer o que pode ser considerada a primeira turnê internacional brasileira.
“A modernidade brasileira está muito vinculada à experiência de semana de arte moderna de 1922, em São Paulo, então isso diz muito também de que histórias o Brasil decidiu contar” defende a historiadora.
Cartola em foto para publicação no Diário da Noite, Rio de Janeiro, em 1957 / Arquivo Diários Associados/Acervo Instituto Moreira Salles
Segundo ela, a equipe da curadoria “pensou essa exposição justamente para tensionar essa ideia tanto da semana de arte moderna, de 22, de um modernismo como se o samba fosse arcaico”.
Ynaê Lopes dos Santos explica que nos anos seguintes houve uma mudança considerável da visão do Estado brasileiro para com o samba. A estudiosa conta que a manifestação cultural passou a ser adotada como símbolo do país, porém em um movimento de “embranquecimento do samba”
Tia Amélia do Aragão, mãe de Donga / Instituto Donga
“O samba tem vários momentos, no primeiro momento ele não é bem-vindo, nem muito bem visto, porque ele é uma manifestação acima de tudo africana, ou afro-brasileira.”, explica.
“ A aceitação do samba passa necessariamente pela desafricanização do samba”.
Segundo a historiadora, sinal disso é “a gente conhecer mais mulheres brancas no samba do que as mulheres negras no samba”, ou a maioria das “escolas de samba do Rio serem presididas por homens brancos”.
Pequenas Áfricas: o Rio que o samba inventou Visitação: até 21 de abril de 2024 IMS Paulista, 7º e 8º andar | Entrada gratuita Terça a domingo e feriados (exceto segundas), das 10h às 20h
A exposição conta com recursos de acessibilidade, como vídeo de apresentação e contextualização em Libras, legendado em português e com audiodescrição; roteiro de audiodescrição com descrição dos espaços, objetos e fotografias; quatro pranchas em relevo; além de tradução poética de músicas em Libras pelas artistas Nayara Silva (surda) e Anne Magalhães (ouvinte).
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