Reprodução de página da revista Aka com fotos de Loretta Emiri
Era uma Kodak com fole, a máquina fotográfica de meu pai. Com ela eternizou camaradas, armas, oásis e populações do norte da África na época da Segunda Guerra Mundial. Eternizou objetos por ele mesmo construídos quando ficou muitos anos prisioneiro na Escócia. Eternizou os que o acompanhavam durante excursões a lindos lugares italianos no imediato pós-guerra. Até a própria morte, por dezenove anos consecutivos eternizou minha mãe no dia do aniversário dela, quando cumpriam o ritual de realizar uma viagem a lugarejos do território em que viviam, sendo que festejavam também o aniversário de seu casamento. Com essa Kodak bati minhas primeiras fotos e, fielmente, continuei a utilizá-la até que não mais encontrei os rolos; amei-a profundamente, porque me permitiu dialogar e conhecer melhor meu pai. Quando voltei à Itália, depois dos primeiros quatro anos vividos entre os Yanomami, a máquina tinha sido roubada por um consanguíneo que acumula objetos e esmaga sentimentos.
Desde pequenina, tinha na cabeça que queria ir trabalhar no chamado Terceiro Mundo. Em idade madura, o romântico desejo virou necessidade interior. Para verificar se era realmente isso que eu queria, e almejando ser alcançada pela coragem de tomar uma decisão, com jovens vindos de várias regiões italianas, numa cidadezinha na beira do mar Adriático, participei de uma experiência chamada “campo de trabalho”. Conheci pessoas que atuavam entre os indígenas em Roraima, escutei seus depoimentos, fui seduzida por belíssimas e intrigantes fotos que retratavam os Yanomami. Durante a experiência a coragem me beijou, assim que pude tomar a decisão de deixar o decrépito Primeiro Mundo para correr atrás do jovem Terceiro.
No começo minha atuação se deu na área da assistência sanitária: a Perimetral Norte, quista pelos militares, quase levou os Yanomami ao extermínio, a causa das doenças introduzidas pelos trabalhadores da estrada; seguiram as
Na língua Yãnomamè, que é uma das seis que fazem parte da família linguística Yanomami, a palavra “utu” significa sombra, e também espírito. Na cultura Yanomami qualquer coisa possui um espírito, sejam objetos, animais ou elementos da natureza. Quando alguém morre, com ele deve desaparecer tudo aquilo que lhe pertenceu: os bens materiais são destruídos ou queimados, destruída é a roça, queimados os abrigos de caça, apagados os rastros. Depois do contato com o homem branco, por extensão o termo “utu” passou a ser utilizado para indicar fotografia, slide, imagem reproduzida. Durante os anos vividos entre eles, bati relativamente poucas fotos. Os Yanomami não gostavam de ser fotografados porque temiam que os autores e detentores das fotografias não respeitassem o tabu cultural, muito sentido na época, segundo o qual, se ficasse uma só foto, o espírito do morto não poderia alcançar a dimensão que eles chamam de “terra de cima”.
Entre as fotografias por mim batidas, há algumas que podem ser consideradas artísticas; entretanto todas elas são um simples registro etno-fotográfico, que introduz à vida e cultura Yanomami: mulheres, meninos, homens, velhos são retratados em atitudes simples, cotidianas; são vistos simplesmente como seres humanos sempre ameaçados de genocídio e etnocídio pelo homem branco que quer aculturá-los, evangeliza-los, destruir florestas, saquear subsolos em nome de uma pretensa superioridade cultural. Se tivéssemos a humildade de escutar os Yanomami, de observar sua sagrada relação com a natureza e com todos os espíritos que a compõem, deixaríamos de nos encher a boca com a palavra “ecologia”, que para os ocidentais é apenas um termo à moda. Para os Yanomami, e demais povos indígenas, “ecologia” é um estilo de vida, evidência comprovada pelo fato deles terem preservado intacta a floresta amazônica até os nossos dias.
O envolvimento com a questão indígena, agravado pelo fato de eu ser mulher sozinha e estrangeira, implicou em muita solidão, muita marginalização. Mas a fotografia me ajudou também nestes momentos tensos e tristes. Eu gosto da macro-fotografia: com foto de insetos e flores, realizei uma série de cartões postais intitulada “Amazônia em seus pormenores”, cujo principal resultado foi trazer beleza para minha vida. Embora hoje em dia esteja morando na Itália, continuo socializando tudo aquilo que produzi, inclusive as fotos, para manter viva a atenção sobre os Yanomami e demais povos indígenas, pois continuam sendo ameaçados pela insensibilidade, ganância, bulimia dos homens brancos que têm transformado a terra numa lixeira imensa e tóxica. Quando a saudade dos amigos indígenas e brasileiros me alcança, bato fotos de pormenores de flores. Porém meu sujeito preferido é o mar Adriático: quando olho para ele é meu espírito que enxergo.
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