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Ilustração: Dona Liça Pataxoop
. No primeiro tempo, o mundo foi criado como parte do mesmo todo. Somos um pouco de tudo o que vive, de tudo o que faz e de tudo que é a natureza. Pertencemos ao mesmo corpo vital da Terra. Somos muitas gentes, mas não somos iguais, temos tantas semelhanças quanto diferenças.
Somos parte das três vidas que formam o corpo da natureza: animais, vegetais e minerais. Nesses domínios, temos parentes chegados, parentes da mesma família, partes do mesmo sangue, filhos do mesmo tronco ancestral. Desde a origem, tudo evolui e se transforma. Há parentes que andam lado a lado, que têm compromisso com a vida do outro, parentes de bom coração que nada têm nas mãos, mas, ao mesmo tempo, têm tudo. E há seres que foram criados com o mesmo pouco de tudo, mas não somos parentes.
Cada espécie tem os seus parentes. Alguns também se tornam parentes pela ajuda ao próximo oferecida e recebida, por conta do cuidado, da simpatia e da alegria pela existência do outro. Dentro do mundo que você é, que você vive, que defende e foi criado, há sempre um pouco de tudo. O ser gente, o ser planta, o ser animal, a irmandade de tudo que é parente se reconhece no amor pela vida. Somos parentes por ter um pouco de tudo. Há respeito, estima e confiança na grande família dos considerados parentes.
O primeiro tempo nos conta sobre tudo, de nossas origens, quando cada um recebeu sua própria história e, desde então, a vida que segue evoluindo na Terra.
Fazemos todos parte do grande giro da Terra no Cosmos, do mesmo movimento da vida na Terra no Universo. Uma folha, um animal, uma pessoa, um rio, todos têm o mesmo direito. Enquanto estamos em pé, somos um só em vida, partilhando, inclusive, o ciclo da criação. Mas cada ser é filho do seu tempo, para si e para os outros.
Afirmar que tudo é parente é reconhecer o sentido mais sagrado. O nosso parente maior é a Mãe Terra. É ela que gera e mantém a vida, que puxa e nos liga ao seu corpo. Todos somos seus filhos, porém cada um tem os seus parentes, uma raiz que é a sua identidade, e o seu lugar no mundo. Se você está aqui, é porque tinha que estar, merece o seu lugar de viver neste mundo.
Sempre mantemos vivo o vínculo com todos os seres terrestres. Porque há uma irmandade que chamamos Tokxãm, onde “tudo é parente’’. Não é toda espécie de gente que é parente. Temos parente de carne e osso, e também temos parente água, árvores, animais e astros. Reconhecemos quem é nosso parente pelo caminhar, pela forma de viver, pelo modo de falar, pela linguagem do coração, pelo cuidar, pelo sentimento, pelo toque, pela fragrância, pelo que faz e oferece no grande ciclo da vida.
Na concepção de uma grande família, dialogamos por códigos do nosso corpo, sentimos o outro, entendemos o outro, ouvimos o outro, respeitamos o outro e, pelos mesmos códigos, vivenciamos uma fraternidade onde “tudo é parente”. É uma doutrina de amor e reverência, na defesa de todos por um e de um por todos.
A Terra para nós é viva, assim a sentimos. Ao plantarmos uma semente seca, ela a recebe quando a enterramos. A Terra oferece o seu corpo para aquecer e gerar a vida. Também guarda o ar para a semente respirar e viver ali embrulhada. Após alguns dias, a semente finalmente brota. De onde vem a vida da semente? Da Terra. Acolhida por ela, germina. Depois de enterrada, a semente se transforma e recebe a vida presente na Terra para se tornar um pé de planta. A Terra gera e forma vários pés de planta. Porque guarda o fôlego da vida para elas.
O pé de planta nasce e eu, que vejo o vegetal nascer, vou acompanhando a sua vida, o seu desenvolvimento. Converso com ele, cuido dele, jogo terra nas suas raízes. Quando cuido do pé de planta, ele sente a minha presença mesmo sem me ver. Eu estabeleço um vínculo de parente com esse pé de planta. E o vegetal passa a ser parte da minha irmandade. Eu sinto o seu vigor, sua energia e a alegria ao conversar e tocar no seu corpo.
Vivemos em comunhão, ninguém sabe do juramento entre nós. Só eu e o pé de planta entendemos os códigos naturais entre nossas vidas. O pé de planta segue a sua história, bebe água do rio pelas veias da Mãe Terra, usa os recursos naturais do seu ambiente para se desenvolver, sem nada destruir. O pé de planta e eu temos uma vida de parentesco e gentileza. Dividimos uma história de vida e respeito. O rio, a mata, as plantas, a maré e os animais esperam a Lua completar o seu giro no Cosmos. O pé de planta se transforma, cresce e dá frutos. Mas seu corpo não se transforma para prejudicar a Terra. A seus pés há um animal que passa a viver ali entre idas e vindas. Eu também estou de passagem, como parte da mesma vida e história.
Para que haja respeito e dignidade para todos, o reconhecimento das individualidades é importante, porque na natureza todo mundo é alguém que merece direito, vida e respeito. Nós combinamos ideias, dividimos a vida, respiramos o mesmo ar, bebemos da mesma água, sentimos o calor sob o mesmo sol e moramos na mesma Terra.
O homem que caça a natureza, um dia pode ser por ela caçado.
FIM
… Kanátyo Pataxoop (Salvino dos Santos Braz, nos documentos) é cacique e professor na aldeia indígena Pataxoop Muã Mimatxi, no município de Itapecerica, Minas Gerais. É escritor, compõe música e poesia sobre a história de seu povo pataxoop e sobre a natureza para alfabetizar as crianças da aldeia. Usa uma pedagogia inovadora, pela qual busca desamarrar os nós de uma educação colonizadora. Através da educação, trabalha com a ideia de um projeto de vida para o povo da sua aldeia. É graduado em Formação Intercultural de Educadores Indígenas, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE – UFMG).
Por meio desse projeto, Kanátyo e os educadores da aldeia trabalham o todo de sua cultura, a vida na Terra, o meio ambiente, as experiências coletivas de vida em vários momentos históricos, a relação com o mundo e os desafios que enfrentam na atualidade. E Kanátyo considera que a escola é o arco e a flecha de caça, a pesca e a luta, que os orienta com um pé fincado no chão da aldeia e outro pé no chão do mundo.
. Dona Liça Pataxoop pertence ao povo pataxó. Mora na aldeia indígena Pataxoop Muã Mimatxi, no município de Itapecerica, Minas Gerais. É educadora, artista e liderança das mulheres. Seu estudo e aprendizado foi com a terra. Partilha os valores essenciais da vida que as matas, os rios, os mangues e o mar lhe inspiram. Não teve formação escolar, o seu método de ensino é baseado na oralidade e na escrita elaborada com imagens ou desenhos narrativas, os chamados Tehêys, que antigamente eram utilizados pelas mulheres como instrumentos de pesca e hoje são empregados como pescaria de conhecimento. Por meio dos Tehêys, as crianças da aldeia aprendem a ler imagens e, assim, a conhecer os valores da vida e da natureza que fazem parte da cultura e do território do seu povo. A metodologia de dona Liça tem sido campo de pesquisa acadêmica e artística. Entre outros, participou como convidada das três fases do projeto Jenipapos: Literatura de autoria indígena (2020), Redes de saberes (2021) e Narrativas sobre viver (2022).
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