Embora a perna do homem pouco se movesse, Fido, debaixo da mesa, apreciava aquela carícia por perto de seu focinho. Aquilo era quase tão agradável quanto ganhar pedacinhos de carne assada diretamente das mãos do dono. Havia já dois anos que, contrariando sua vocação e sua constituição (patas grossas e firmes, cangote robusto, orelhas afiladas), Fido se convertera num cão de apartamento, condição que parecia ser mais adequada aos totós efeminados, histéricos e mijões.
Fido não pertencia a uma raça definida, mas era um animal disciplinado, consciente, que em geral adiava suas necessidades até o meio-dia, hora em que o levavam à calçada para que passasse em revista as árvores. Sabia, também, como se equilibrar em duas patas até receber a ordem de descanso, trazer o jornal na boca todas as manhãs, emitir um latido barítono quando tocava a campainha e servir de capacho para seu dono quando ele voltava do trabalho. Passava a maior parte do dia isolado num canto da sala de jantar ou sobre os ladrilhos do banheiro, dormindo ou simplesmente contemplando o verde calmante da banheira.
Em geral, não incomodava. É verdade que não sentia um afeto especial pela mulher, mas como era ela que se ocupava de preparar-lhe a comida e renovar-lhe a água, Fido, hipocritamente, lhe lambia as mãos uma vez por dia, afim de não perturbar serviços tão vitais. Seu preferido era, naturalmente, o homem e quando ele, depois de almoçar, acariciava a nuca ou a cintura ou os seios da mulher, o cão se agitava, ciumento e medroso, num canto mais sombrio da sala de jantar.
Os grandes momentos do dia eram sem dúvida as duas refeições, o passeio diurético pela rua e, em especial, aquela tranqüilidade depois do jantar, quando o homem e a mulher conversavam, distraídos, e ele sentia junto ao focinho o roçar afetuoso das calças de flanela.
Mas naquela noite Fido estava estranhamente inquieto. O tremor das costas não era, como em outras sobremesas, um sinal de carinho e reconhecimento, um truque habitual de cachorro velho. Naquela noite o passado imediato pesava sobre ele. Uma série de imagens, bastante recentes, se acumulara em seus olhinhos chorosos e experientes. Em primeiro lugar: o Outro. É, uma tarde em que estava sozinho no apartamento, dormindo sua sesta em frente à banheira, a mulher chegou acompanhada do Outro. Fido latira sem timidez, comportara-se como um profeta. O fulano chamara por ele repetidas vezes num falsete carinhoso, mas não lhe agradavam nem aquelas cortantes calças pretas nem o antipático cheiro do homem. Duas ou três vezes conseguiu se controlar e se aproximou farejando, mas afinal retirou-se para seu canto da sala de jantar, onde o cheiro da fruteira era mais forte do que o do intruso.
Daquela vez a mulher só tinha falado com o Outro, embora risse como nunca. Mas outro dia em que estava sozinha com Fido e o fulano apareceu, deram-se as mãos e acabaram abraçados. Depois, aquela cara redonda com bigodes pretos e olhos saltados, apareceu cada vez com mais freqüência. Nunca iam para o quarto, mas no sofá faziam as coisas que traziam a Fido enormes saudades das cachorrinhas de certa chácara onde transcorrera sua cachorrice.
Uma tarde – sabe-se lá por quê – voltaram a notar sua presença. Desde o início, Fido compreendera que não deveria se aproximar, que seus latidos proféticos do primeiro dia não se poderiam repetir. Para seu próprio bem, para a continuidade dos serviços vitais, pelo ansiado passeio pela calçada. Não lambia as mãos de ninguém, mas também não incomodava. Eles, entretanto, perceberam sua presença. Na verdade, foi a mulher, e era natural, porque com o fulano nada tinha em comum. Talvez ela tomasse especial consciência de que o cão existia, de que estava presente, de que era uma testemunha, a única. Fido nada tinha a reprovar-lhe, ou melhor, não sabia que tinha algo a reprovar-lhe, mas estava ali, no banheiro ou na sala, olhando.
E sob aquele olhar úmido, remelento, a mulher acabou ficando inquieta e não tardou em ser tomada por um ódio violento, insuportável.
Naturalmente, pouco de tudo isso chegara a Fido. Mas uma coisa o atingira e era o rancor com que era tratado, a raiva incomum com que era admitida sua obrigatória vizinhança.
E agora que recebia a cota diária de afeto, agora que sentia junto ao focinho o roçar e o cheiro preferidos, sabia-se protegido e seguro. Mas, e depois? Seu problema era uma lembrança, a mais próxima. Há uns dias, dois, três – um cão não rotula o passado -, o fulano precisara sair com pressa (por quê?) e deixara esquecida a cigarreira, uma coisa linda, dourada, muito dura, sobre a mesa da sala de estar.
A mulher a guardara, também apressada (por quê?), sob uma cortina da despensa. E lá, tão logo se viu sozinho, foi farejá-la Fido. Aquilo tinha o cheiro desagradável do fulano, mas era duro, metálico, brilhante, uma coisa cômoda de lamber, de empurrar, de fazer soar contra as tábuas do piso.
A perna do homem não se moveu mais. Fido entendeu que por hoje a festa havia acabado. Preguiçosamente foi esticando as patas e se levantou. Ainda lambeu um pedaço de tornozelo que estava descoberto, entre a meia listrada e a calça. Depois se foi sem grunhir ou ladrar, com passo lento e reumático, para seu canto tranqüilo.
Mas algo inesperado ocorreu então. A mulher entrou no quarto e voltou em seguida. Ela e o homem falaram, a princípio relativamente calmos, depois aos gritos. Logo, a mulher se calou, tirou a bolsa do cabide, colocou-a a tiracolo e – sem que o homem fizesse qualquer gesto para impedi-la – saiu para a rua, batendo a porta com tanta violência que o cão não teve outro remédio senão ladrar.
Ocorreu a Fido que aquele era o momento. Nada de vingança; na verdade, não sabia que era, mas o instinto lhe mostrava que aquele era o momento.
O homem estava tão ensimesmado que não percebeu logo que o cachorro o puxava pelas calças. Fido precisou recorrer a três curtos latidos. Sua intenção era clara e o homem, depois de vacilar, seguiu-o entediado. Não foi muito longe. Até a despensa. Quando o cão afastou a cortina, o homem só conseguiu retroceder, depois abaixou e apanhou a cigarreira.
Na verdade, Fido nada esperava. Para ele, o achado não tinha muita importância. De modo que, quando o homem deu aquele terrível soco na parede e começou a gritar e chorar como um totó do segundo andar, não soube fazer outra coisa além de, ele também, retroceder assustado diante da comoção que provocara. Ficou em silêncio, colado à soleira da porta, e de lá observou como o homem, com os dentes apertados, gritava e gemia. Então decidiu aproximar-se e lambê-lo com ternura, como era seu dever.
O homem ergueu a cabeça e viu aquele rabo movediço, aquele importuno que vinha consolá-lo, aquela testemunha. Fido ainda arfou satisfeito, mostrando a língua úmida e escura. Depois se acabou. Era velho, era fiel, era confiante. Três pobres razões que o impediram de se espantar quando o pontapé lhe arrebentou o focinho.
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