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O PAI COSTUMAVA DIZER que a família de mamãe em nada deve aos personagens da literatura russa.
Se procurarmos os fantasmas que habitam os armários desta casa, ironizava, encontraremos assassinos atormentados que cometeram seu crime por benevolência, suicidas por felicidade, pessoas que se adoravam até o ponto de separar-se para sempre, delatores por fervor religioso, amantes que mataram por amor, sem contar os frutos de incestos, os bastardos gerados nas sestas quando o leito dos senhores aceitava a companhia da famulagem.
Há certo exagero de papai. Assim ele se vingava da maledicência de mamãe. Mas não há dúvidas sobre a extensa galeria de figuras à altura dos personagens russos que procuro investigar com dificuldade, porque sempre esbarro no silêncio de mamãe e das tias.
Mamãe não admite os registros constrangedores sobre os hábitos dos parentes. Quando os citamos ela reage com uma frase costumeira que, em sua compreensão, justifica tudo o que Don Vithorino, seu avô e herói familiar, tenha feito para o bem e para o mal.
– Era um homem, era um chefe. Quantos construíram, como ele, um império?
Mamãe detesta lembrar o outro ramo da família, que surgiu da miséria de Izabel Rios, a mocinha de 14 anos sequestrada por Don Vithorino e de onde veio o meu avô, Paulino, e de onde viemos todos nós.
Jamais se refere às origens de minha bisavó Izabel, filha do servo da gleba de Don Vithorino, Pedro Duarte, um paraguaio que aqui estava quando chegaram os soldados para instalar a Colônia Militar e estabelecer outra ordem na fronteira.
Pedro ia pelo sertão com sua tropa de mulas e um compadre, Celidônio Gonzáles, para extrair erva-mate. Sua coragem lhe deu fama quando invadiu o fortim de Don Vithorino, o homem mais poderoso entre a foz do Iguaçu e Posadas, para resgatar a filha Izabel e seu neto Paulino.
Os personagens excluídos por mamãe da história da família talvez sejam os mais interessantes que poderíamos ter em nossa galeria. Além de meu pai, que carregou para o túmulo a fama de ter posto tudo a perder. Injustiça compreensível quando percebemos a necessidade que mamãe tem de puni-lo, mesmo depois de morto.
A censura de mamãe protege a prima que foi deflorada pelo caixeiro-viajante de Curitiba que fugiu ao cerco organizado pelo tio. Também protege o primo que deu um grande desfalque no banco e desapareceu, nunca mais foi visto.
Foi para o arquivo morto da memória de mamãe o tio que aplaudia o regime fardado e levava os militares de alto coturno para caçar e pescar, em constrangedora bajulação. Depois de anos a reinar entre os personagens mais importantes da família, caiu em desgraça junto com o regime fardado.
Seu retrato foi retirado dos álbuns e das paredes e seu nome esquecido.
Ali, na galeria de mamãe, não há lugar para os anjos caídos. Foram eliminadas as ovelhas negras. Desapareceram todos os registros dos incestuosos, dos pedófilos e dos ladrões.
Não há registro da covardia dos marmanjos da família quando aqui chegou a Coluna Prestes, em 1924. Só as mulheres e as crianças ficaram na cidade para proteger os bens, os animais, as casas. Os homens fugiram para o outro lado do rio e se faziam passar por argentinos.
Não consta o primo que morreu de obesidade mórbida, marcado por uma paixão não correspondida. E não se admite que falemos de seu funeral, motivo de riso e chacota por muito tempo.
Mamãe permite lembranças de seu irmão, o tio Alfredo, mas jamais devemos recordar que ele estrangulou a mulher e foi absolvido por legítima defesa da honra, tendo o pai como advogado.
Não se fala do tenente Baptista, o segundo marido de minha bisavó Izabel. Ela voltou a se casar depois de escapar do jugo do bisavô Don Vithorino por obra e coragem do outro bisavô, Pedro Duarte.
Mamãe e suas irmãs não admitem que ela se casou várias vezes. Mesmo diante da evidência de tios com sobrenomes tão diferentes – Baptista, Rios, Ferreira – todos filhos de Izabel.
Mamãe e as tias preferem cultivar lembranças que as fazem felizes. Sempre repetem a histórica passagem de Santos Dumont por Foz do Iguaçu. É a deixa para que possam repetir a cena do flerte, quase romance, que o inventor do avião teve com a tia Adélia que, segundo a tia Amália, ficou solteira para sempre em homenagem ao pai da aviação.
Santos Dumont está registrado na categoria dos quase-parentes, criada por mamãe, onde ela inclui extenso rol de conhecidos ilustres. Nessa lista cabem os personagens que ela e as tias conheceram e que gostariam de ter como ornamento da sua árvore genealógica.
Tem sido freqüente me deparar com essas mentiras ao investigar o grau de parentesco de um tio ou de um primo. Acabo sabendo que na verdade não há parentesco nenhum com os generais, políticos, governantes que, em sua grande maioria, passaram uma única vez pela cidade, o suficiente para deixar rastros na imaginação de mamãe e das tias, que assim constroem a sua própria história e a sua própria família, descartando o que não lhes interessa e somando o que gostariam que fosse verdadeiro.
O ASSALTO DO TEMPO é menos devastador que esta bifurcação do pensamento. Não há muito que investigar nas anotações de família. Ou eu é que já não tenho disposição para ler
e reler os alfarrábios, subjugado pela preguiça que desvia a minha atenção a todo o momento.
Marta está deitada, as coxas nuas, ainda é uma bela mulher. Em seu rosto não há pudor e não há desejo. É como se eu não existisse. Seu olhar é distante. Tem as pernas nuas porque quer refrescar-se. Eu tenho vontade de deitar-me ao seu lado e rendê-la mais uma vez. Não tenho coragem.
Por que escrever a tese acadêmica em linguagem obrigatória que detesto? Na verdade, é a tentativa de escrever a minha própria história ou algo que a preencha. Por essa linha de dúvidas me estendo. Entre espelhos e vislumbres procuro encontrar a mim mesmo.
Voltei-me para Marta, que continuou imóvel. Meus olhos mendigos percorreram seu corpo até fixar-me em seus olhos e não houve resposta. Seria tão fácil abrir a boca, pedir, aconchegar-me, é muito provável que ela permita como sempre faz, como quem cumpre a obrigação da fêmea. Seria fácil, mas tenho a alma pegando fogo e quero mais que isso, na verdade quero que ela tenha o fogo que se apagou.
Pensei em escrever de maneira simples e austera. Na ordem direta. Cuidadoso no uso das metáforas. Economia nos advérbios e nos adjetivos. Para, ao menos, parecer mais honesto. Seria possível se eu tivesse alguma convicção. Do outro lado está o vazio, espaço sombrio, ameaçado pela escritura e suas incertezas. Ando entre as imagens de um mundo desmemoriado e sou apenas uma de suas imagens, cada vez mais apagada nos exercícios de mistificação de mamãe.
Sei que estou dentro do labirinto que eu mesmo construí, onde desde o princípio um menino está perdido diante de um poço profundo onde conto a minha queda. Por onde sobe a água e desce a minha sombra.
E de que vale o esforço para fazer algo que perdure se não estarei aqui para testemunhar?
Não, de nada serve a tese de doutorado sobre personagens que considero interessantes mas que a história esqueceu. De nada serve essa tentativa inútil de reparar esquecimentos e repetir, talvez, em linguagem respeitável, o que mamãe e as tias fazem naturalmente em seus relatos.
Busco o reconhecimento de meus ancestrais e a esperança de fazer conhecido o meu próprio valor, que sei que é pouco, minguado, principalmente agora, quando se levantam os muros que me impedem de avançar.
Espero que Marta diga alguma coisa. Falta-me tudo. Vontade, informação, disposição para o trabalho, autoconfiança, as qualidades que os antepassados provaram e que se esvaíram nas gerações seguintes, acomodadas à vida fácil, sem exigências, que tiveram tudo à mão, de graça, inclusive a honra e as glórias dos ancestrais inscritas no sobrenome.
Vacilante. Passo a passo estou a titubear em busca de apoio para prosseguir. Encaro as pilhas de papéis antigos que estão sobre a mesa. As anotações imprecisas do diário de meu bisavô Vithorino Tharless, que misturam personagens e épocas sem qualquer rigor, o que lhe permitiu, de certa forma, tornar contemporâneos Cabeza de Vaca, o primeiro que por aqui passou em 1542, o os militares de 1888.
São documentos que ninguém mais valoriza. A primeira carta da fundação da Colônia Militar com anotações do segundo marido de minha bisavó Izabel, o tenente Baptista, que a revisou mas não quis modificá-la, mesmo ao perceber que fora escrita com tintas da insanidade de seu comandante, o capitão José Joaquim Firmino.
MAMÃE NÃO SE DEIXOU quebrar. Raramente reclama de uma ou outra pequena dor. Nada preocupante, o médico nos disse que está muito bem, é mais saudável do que as irmãs. Não nos deixará tão cedo. As tias mais novas estão acabadas, coitadas. Você sabe como são as velhas. Aborrecidas, com o aflitivo hábito de repetir as coisas ditas uma hora antes, sempre as mesmas. As costas curvas, os lábios enrugados pela retração dos dentes, o contínuo adormecer nas poltronas, as respirações sibilantes, as tosses cavernosas.
Mamãe, não, mamãe está ótima e chega a ser irritante vê-la com tanta energia, aranha produzindo incessantemente a teia, enredando em sua história todos os que a invadem.
É um mundo sem janelas, o de mamãe. Há anos ela se recusa a olhar para fora e refere-se à cidade como se ela fosse a mesma de sua juventude. Um cenário paralisado, sem tempo, sem cronologia, no qual organiza os acontecimentos e os personagens à sua vontade. Não que esteja delirando e nem pensem que esteja caduca. Creio que essa é a maneira de defender-se, excluindo-se da história que não aceita, escoimando da memória fatos e pessoas que a amarguraram. Refere-se aos bailes como se deles tivesse participado na noite anterior. Reproduz conversas com amigas que partiram ou morreram há muito tempo.
Marta tem sido condescendente. Acompanha-me nesta aventura sem cores e sem luz, no breu dos arquivos decompostos, de papéis perdidos, de indícios sonegados, aonde nem os historiadores oficiais chegaram a se embrenhar. Há anos tento recompor ordenadamente o cenário anterior e restaurar a mitologia estimulada pelas histórias herdadas da família. A mais fantástica de todas é a predição de Rosa Saavedra, que instiga a consciência de minhas tias e as fazem tremer de medo quando ouvem um estrondo mais forte, uma trovoada, foguetes ou de tiros. Só elas guardaram a previsão, com tanto cuidado quanto a Igreja guarda o último segredo de Fátima, de que um dia as águas do rio Paraná subiriam para cobrir tudo, e isso aconteceu, e um dia rebentariam levando de roldão o que encontrassem pela frente até desaguar no Prata. Antes, a história era contada para sublinhar a demência da vidente que viveu na época dos bisavós. Mas quando surgiu o lago de Itaipu, elas relacionaram a lenda à sua comprovação.
Não mais estão vivas as pessoas da época de Rosa Saavedra, que desapareceu durante a tempestade da virada do século, a maior já registrada, de chuvas, relâmpagos e trovoadas tão grandes que o povo se recolheu na Igreja pensando que era o fim dos tempos. Mais de oitenta anos depois, as águas subiram, represadas pelo paredão de concreto, saltaram fora de seu leito e foram cobrindo tudo ao seu redor, terras, casas, igrejas, cemitérios, cartórios, povoados, estendendo-se por onde fluía, naufragando definitivamente os sinais e as ruínas dos pequenos impérios que existiram às margens do Alto Paraná.
Também não estão aqui os ouvintes da segunda parte da profecia, ainda não cumprida, de que as águas um dia se rebelarão e destruirão seu cárcere de pedra, areia e cimento, descendo em fúria e arrastando o que encontrar pela frente até o rio da Prata, para restabelecer a ordem natural, pois esta construção não foi obra do Altíssimo ou do Demônio, mas dos humanos, em seu insistente arremedo de Deus, como costumava dizer o padre Montesinos, que também nunca acreditou nas predições de Rosa Saavedra, mas sempre temeu as falhas que os engenheiros costumam cometer.
Já não vivem Rosa Saavedra e o padre Montesinos. Não há sobreviventes da época. Nem a memória dos pósteros os preservou. Desapareceram para sempre, sem deixar registros de sua presença nos documentos do Estado ou nos poucos livros de controle das companhias. Eram personagens provisórios, como tudo o mais, naquele tempo e naquele lugar, e antes e depois deles.
Mas que diriam eles se voltassem e vissem o cenário que apagou completamente os vestígios de sua passagem?
Já não há a selva e quem a devastou. Apenas a água cercada de campos arados, onde habitam agricultores que não sabem quem os precedeu.
As cidades aglomeram gente desmemoriada e livres do temor que a previsão de Rosa Saavedra poderia impor. Não teriam tempo para pensar e acreditar no pior, envolvidos nos negócios deste ciclo contemporâneo das maldições: o contrabando, o tráfico de drogas e de armas, a prostituição de crianças, além da exploração dos turistas que descem para ver as cataratas e dela se maravilham e logo par tem para escapar ao assédio do calor, dos insetos, dos vendedores e dos assaltantes.
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