Bivar em Curitiba (Foto: Helio Silva / BPP)
Antonio Bivar entrou no mapa da cultura brasileira no fim dos anos 1960. Paulista de Ribeirão Preto, formou-se pelo Conservatório Nacional de Teatro (RJ) e logo começou a escrever as próprias peças. Marcadas por uma linguagem inovadora, bem-humorada e pop, montagens como Alzira Power, Cordélia Brasil e Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã influenciaram toda uma geração e hoje são consideradas fundamentais para o entendimento do teatro moderno do país. Bivar, no entanto, não se prendeu à dramaturgia e ao Brasil. Perseguido pela censura e envolvido com o movimento hippie, uniu o útil ao agradável e partiu para Londres, onde conheceu de perto a efervescência contracultural da virada das décadas de 1960 e 1970. De volta ao Brasil — mas sem nunca deixar de perambular pelo mundo —, escreveu para jornais e revistas, dirigiu shows (Maria Bethânia, Rita Lee), organizou o pioneiro festival punk Começo do Fim do Mundo (1982), estudou a obra de Virginia Woolf e escreveu mais de dez livros, entre outros projetos e aventuras.
Sua obra literária conta com mais de dez títulos, de diversos gêneros. Do conto (Contos atrevidos) ao romance (Chic-A-Boom), do ensaio (O que é punk?) à biografia (Yolanda, sobre a socialite Yolanda Penteado). Mas é por seus livros de memórias que ele gostaria de ser lembrado. Ou “autobiografias”, como prefere chamar. Já publicou quatro até o momento: Verdes vales do fim do mundo, Longe daqui, aqui mesmo, Bivar na corte de Bloomsbury e Mundo adentro vida afora (a mais recente, lançada no final de 2014). Na conversa com o Cândido, Antonio Bivar falou sobre sua trajetória profissional, escolhas pessoais, interesses e fixações. Com destaque para seu envolvimento com o chamado “Grupo de Bloomsbury”, movimento de jovens artistas e intelectuais ingleses (como a escritora Virginia Woolf e o economista John Maynard Keynes) que influenciou o resto do mundo no início do século XX. Autodidata e diletante, Bivar é o único brasileiro membro da Virginia Woolf Society of Great Britain e também o único latino-americano que participa de um encontro anual com os maiores conhecedores do legado de Bloomsbury — e, ainda, a única pessoa de 76 anos admirada pelo movimento punk brasileiro.
Em 1973, comecei um diário, em que também guardo todos os recortes de matérias que saem sobre o meu trabalho na imprensa. Não por vaidade, mas como documento mesmo. Meu pai também guardava esse tipo de coisa, então tenho álbuns e mais álbuns em casa. Uso tudo isso quando estou escrevendo minha “autobiografia em série”, vamos dizer assim. (…) Escrevo e publico os livros em partes separadas, mas tudo organizado cronologicamente. Por exemplo: No Mundo adentro vida afora, que saiu há pouco tempo, conto o começo da minha vida. Já o primeiro da série, Verdes vales do fim do mundo (1985), é sobre a temporada que passei nos Estados Unidos e na Europa em 1971. E assim vou emendando tudo. Como as histórias contadas no Bivar na corte de Bloomsbury (2005) terminam em 2004, só posso escrever uma coisa curtinha agora, sobre os últimos dez anos.
O encontro com Virginia Já tinha ouvido falar da Virginia Woolf, mas só fui ler um livro dela pela primeira vez em 1973. Foi totalmente por acaso. Descobri As ondas num apartamento em que eu estava passando um tempo e logo me identifiquei. Sinto que o estilo dela tem muito a ver com o meu, o mesmo jeito. E se você ler as obras da Virginia, vai ver que tem muitos “pinotes”. Ou seja, ela está contando uma coisa e de repente larga aquilo, passa para uma outra. É uma delícia, porque você leva um susto, acorda e continua lendo. Eu sou assim também quando conto uma história. É uma mudança brusca. E fica muito engraçado, porque depois ela retoma. Na verdade, a Virginia tem muito humor. As pessoas fazem drama, porque ela se matou e tudo mais, mas ela tem muito humor.
Um dia, em 1993, estou numa livraria em Londres, abro um livro e cai um folheto anunciando uma “escola de verão” na Fazenda Charleston, onde vários membros do Grupo de Bloomsbury moraram ou passaram temporadas. Era uma turma para no máximo 21 pessoas, acadêmicos europeus e americanos. Fui no consulado no Brasil, pedi ajuda e consegui entrar nessa escola de verão. E foi uma delícia, porque fui considerado a pessoa que levou emoção à turma. E ainda fiquei amigo do sobrinho e biógrafo da Virginia, o Quentin Bell, para quem ela dedicou Orlando. A gente se correspondeu por anos, até bronca por carta ele me dava. O Quentin morreu em 1996, e ainda me dou muito bem com a viúva dele.
Bivar e a dramaturga Leilah Assumpção em Londres, nos anos 1970.
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O primeiro livro da Virginia, A viagem, publicado em 1915, se passa no Brasil sem citar o Brasil. Quando li o livro, senti que tinha uma coisa amazônica ali. Depois, lendo o estudo de uma acadêmica, não tive dúvidas de que se passa no Brasil. Embora o sobrinho da Virginia diga que a visão dela sobre a América do Sul era grotesca. Ela achava que tinha puma nas ruas de Buenos Aires, que as borboletas eram do tamanho de urubus. Mas o livro mostra Bivar e a dramaturga Leilah Assumpção em Londres, nos anos 1970. uns personagens ingleses que vêm num cargueiro para a América do Sul. Ele querem ir para Buenos Aires, mas desviam e vão parar na boca do Amazonas. Olhando aqui, estudando o mapa, achei que se passa um pouco no Maranhão. A Virginia nunca pisou nesse lado de cá do mundo, nem nos Estados Unidos ela foi. Mas você sente a opressão amazônica, aquela grandiosidade. Os rios, a floresta, aquela opressão que maltrata os personagens.
Comparo o Grupo de Bloomsbury com os nossos modernistas, que vieram um pouco depois. Eles criaram o modernismo na Inglaterra, levaram a novidade para lá. Porque quem estava por cima na época eram os franceses e os alemães. Mas a importância do grupo em si foi maior que as obras de cada um dos participantes — tirando a Virginia Woolf, claro, uma das maiores escritoras do século XX. O mais importante era o estilo de vida. Eles sabiam viver com pouco, viajavam sem muito dinheiro. Mas tinham um estilo de vida tão libertário, tão renovador para a época, que eram muito falados. E ainda são. Estão em peças de teatro, viram personagens de ficção. Já fizeram tantos filmes sobre eles da década de 1990 para cá. Agora mesmo a BBC está exibindo uma série sobre o grupo.
Muitas pessoas ficaram para trás. Não saíram daquela coisa dos beats, dos hippies, de adorar os Beatles. Eu, não. Em 1982, quando voltei de uma temporada na Inglaterra, senti que ainda havia aquele clima “bicho grilo”, antigo, passadista. Mas, de repente, vi o movimento punk acontecendo no centro de São Paulo. E realmente era um movimento, porque tinha muita gente. Me identifiquei na hora, porque também tive uma adolescência dura, de trabalho braçal. Uma adolescência muito mais parecida com a dos punks do que com a da classe média hippie, que morava bem, vinha de boas famílias. (…) Sou amigo dos punks até hoje. Há alguns anos, fui atropelado por um ônibus em São Paulo, quebrei costela, etc. Acredita que um dos bombeiros do resgate era um punk que me reconheceu? Ele me ajudou, avisou o pessoal do movimento e várias pessoas vieram me procurar, para saber como eu estava.
Passei quase dez anos, de 1983 até 1991, escrevendo uma peça sobre a História do Brasil. Porque todo mundo estava alienado naquela época, eu mesmo estava. Era influenciado pelo rock, pelo punk, pela Virginia Woolf, mas não conhecida nada do Brasil. Até que o Celso Paulini, um professor que gostava do meu teatro, me convidou para escrever a quatro mãos. Acabei deixando tudo de lado para trabalhar com ele, mas foi um grande prazer. O Celso era dez anos mais velho que eu, e a casa dele era a coisa mais espartana possível. Não tinha nem vitrola, televisão. Só bolacha e cafezinho, e a gente mergulhando e fazendo acontecer. Ele morreu em 1991, teve um ataque do coração, paramos na quarta peça. Mas ficaram três, reunidas no livro Histórias do Brasil para teatro. Ganhamos prêmio, o grupo Tapa fez uma montagem maravilhosa e as peças continua sendo montadas nas escolas. Não que eu ganhe algum dinheiro com isso, mas continuam fazendo as peças por aí.
Eu não ganho dinheiro com livro, com peça, com nada. Ganho, hoje em dia, só com os textos que escrevo para a revista Joyce Pascowitch. A Joyce diz que aprendeu tudo comigo nos anos 1980, quando editei a revista do Gallery [boate e casa de shows que marcou época em São Paulo]. Ela me dá um espaço para escrever e eu sobrevivo disso. Sou meio acomodado. Se estou trabalhando em algum projeto que me permita sobreviver, mesmo que pobremente, eu não vou atrás de outra coisa, não vou à luta. A não ser quando é um livro que eu esteja escrevendo, aí é uma briga para conseguir editor, sempre uma dificuldade. (…) Eu adoro ser um Francisco de Assis. Fiz voto de pobreza na época do LSD, do movimento hippie. Até já quis voltar atrás, porque fiquei pobre demais. Mas não dá. Se você fez o voto, tem que ir até o final.
Já ganhei um prêmio aí no Paraná, em 1980. Um prêmio de humor. Organizaram uma feira de humor, com curadoria do [jornalista, artista gráfico e poeta] Reynaldo Jardim, em que valia tudo: tiras, textos, cenas. Um amigo meu ficou sabendo e sugeriu que eu enviasse uma peça que escrevi para o Walmor Chagas, mas que ele ainda não tinha montado. Você precisava se inscrever com um pseudônimo, ninguém sabia que eu estava participando. Acabei ganhando em primeiro lugar, e com o dinheiro pude passar um tempo estudando na Inglaterra. Meio estudando, meio vagabundeando. Porque eu gosto dessa coisa livre, de estudar a vida na rua, na calçada, nos lugares. Às vezes até passo algumas horas numa biblioteca se estou muito interessado por um assunto. Mas sou mais um autodidata. Sou atraído pelas coisas que acho interessantes e vou fundo.
Não tive filhos. Mas tive uma companheira, que conheci lá na Fazenda Charleston, em 1993. Fomos casados até ela morrer, em 2008. A Jenny foi editora de uma grande companhia inglesa, era uma pessoa muito ligada às artes em geral. Quando nos conhecemos, ela estava saindo de um casamento com um rico financista. Eu falei: “Você vai entrar numa fria, porque eu sou um pé de chinelo”. Ela nem ligou. No leito de morte, ainda disse para os filhos e irmãos que eu fui a pessoa de quem ela mais gostou na vida. A gente se dava muito bem. Foi uma ótima companheira de viagem, topava tudo, não tinha frescura. E adorava o Brasil, tanto que a família trouxe as cinzas dela para espalhar aqui, em uma praia.
Atualmente, não vejo nada que me interesse a ponto de me fazer mergulhar, como foi com os beats, com os hippies, com o punk, com a Virginia Woolf. Por outro lado, sinto que há uma expectativa geral muito esquisita com relação à política, à crise. Não só no Brasil, é uma coisa mundial. Essa imigração de africanos para a Europa, por exemplo. Isso vai mudar muito a paisagem daqui para frente. E está acontecendo no Brasil também. Tenho visto, no centro de São Paulo, barracas de africanos vendendo tecidos da África como se eles fossem os camelôs de antes. (…) O Brasil dá a impressão de ser o país do horror, e eu tenho a impressão de que ele vai até o fundo do poço mesmo. Mas lá, do fundo do poço, sempre surge uma levantada reestimulante.
O teatro foi um começo para mim, uma passagem. Vi Esperando Godot, do Beckett, e percebi que não era tão difícil escrever uma peça. Mas até hoje me apresentam como dramaturgo. Eu até posso voltar a escrever peças, mas não sou um homem do teatro, como o Zé Celso [Martinez Corrêa] ou várias outras pessoas que vivem disso. Tenho uma imensidão de outros caminhos que eu gosto muito mais. Gosto mais de literatura, de livro, do que de teatro ou de qualquer outra coisa. É uma coisa errada, uma coisa brasileira, de classificarem você e insistirem nisso. Outro dia, pesquisando sobre a Aracy de Almeida no You- Tube, vi ela falando: “Cansei de cantar, só cantei uma época para ganhar dinheiro”. Eu fazia teatro um pouco para sobreviver mesmo, para pagar o aluguel e comer durante o mês. Não foi o meu maior amor.
Gostaria de ser lembrado pelos meus livros, por essa série de autobiografias. Porque eu não falo só de mim. Falo das pessoas, do convívio com elas, dos lugares, dos costumes. Apesar de ser uma coisa autobiográfica, tem um pouco de romance também. Meu prazer é falar sobre esses encontros e colocar um pouco de humor, mostrar o lado engraçado da vida. O humor, o absurdo, as situações… Eu gosto disso, e gostaria de ser lembrado por isso.
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