Combate às fraudes nas universidades é feito pelas comissões de heteroidentificação – Foto: Marcelo Casall/Agência Brasil
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“Eu sempre acreditei que era um caminho natural, sair do ensino médio e entrar no ensino superior, mas eu não sabia como isso era possível. De certo modo, o que entendíamos é que o ensino superior não é para todo mundo”. Essa é a memória que o sociólogo Wellington Lopes, de 28 anos, tinha sobre sua ideia de acessar uma universidade em 2013. Às vésperas de sair do Ensino Médio, Lopes ainda não conhecia a Lei 12.711, conhecida como Lei de Cotas, promulgada em 29 de agosto de 2012.
Após um ano de estudos na Uneafro, rede de cursinhos populares que prepara jovens de periferia para vestibulares, Lopes conseguiu uma vaga, usando a Lei de Cotas, para Ciências Sociais na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), onde se formou em 2018. Hoje, é voluntário da organização e milita para garantir a manutenção da legislação.
“Uma pessoa pobre e de quebrada ingressar no ensino superior faz parecer mais possível para todo mundo. Outras pessoas, inclusive da minha família, entraram no ensino superior após o meu ingresso”, explica o sociólogo.
Quando a Lei de Cotas foi criada, já havia programas de reserva de vagas para a população negra em 80% das universidades públicas do país. A pioneira foi a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), que adotou o modelo em 2003.
A lei foi fruto da luta e elaboração do movimento negro. Ainda em 1983, o então senador Abdias do Nascimento apresentou o Projeto de Lei 1.332, que previa a criação de 20% de cotas para mulheres e negros no serviço público e nas universidades.
“Os africanos não vieram para o Brasil livremente, como resultado de sua própria decisão ou opção. Vieram acorrentados, sob toda sorte de violências físicas e morais; eles e seus descendentes trabalharam mais de quatro séculos construindo este país. Não tiveram, no entanto, a mínima compensação por esse gigantesco trabalho realizado”, afirmava Abdias do Nascimento, na justificativa do Projeto de Lei.
“Fazem-se necessárias, portanto, medidas concretas para implementar o direito constitucional da igualdade racial, garantida aos brasileiros negros pela Constituição. Este Projeto de Lei atinge apenas três dimensões da discriminação racial contra o negro no Brasil: nas oportunidades e remuneração do trabalho, na educação e no tratamento policial”, encerra o parlamentar.
Desde então, a reserva de cotas nas universidades como medida de reparação histórica passou a figurar na agenda do movimento negro brasileiro. Hoje, a conquista é celebrada.
“A Lei de Cotas foi a política mais efetiva já construída no sentido de produzir uma diversidade e fazer com que grupos, que historicamente estavam fora das universidades, chegassem até esses espaços. É um balanço positivo e as cotas devem continuar para a construção da igualdade”, afirma a professora Zélia Amador, militante histórica do movimento negro e integrante da coordenação nacional da Coalizão Negra por Direitos.
Antes de ser implementada, a Lei de Cotas enfrentou resistência de diversos setores da sociedade. Em abril de 2008, um grupo de 113 intelectuais, artistas e políticos assinaram uma carta rechaçando a reserva de vagas para negros e indígenas nas universidades, como Caetano Velos, Gerald Thomas, Nelson Motta, Ferreira Gullar, João Ubaldo Ribeiro e Lilia Schwarcz, entre outros.
“As cotas raciais (…) ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais (…) passam uma fronteira brutal no meio da maioria absoluta dos brasileiros (…) um Estado racializado estaria dizendo (caso as cotas vigorassem) aos cidadãos que a utopia da igualdade fracassou”, dizia a carta.
No impulso dado pela carta, o DEM foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) exigindo que o sistema de cotas raciais fosse proibido no país. À época, o partido escolheu a Universidade de Brasília (UNB), que havia instituído a ação afirmativa em 2003.
“Houve muita resistência ao processo de criação das cotas raciais, inclusive artistas de esquerda, que foram contra, diziam que ia dividir a sociedade brasileira, rompendo com uma ‘democracia racial’. É o oposto, a cota não isola, ela permite que um grupo inteiro se movimente”, afirma Lopes, que lembra ter vivido, ainda em 2015, o clima belicoso de enfrentamento às cotas e cotistas no país.
“Quando eu entro, ainda existia um rancor com o processo das cotas raciais. As relações com alunos e professores eram violentas”, recorda o sociólogo, que enfrentava dificuldades fora do espaço da universidade. “As relações brancas se protegiam no Mato Grosso do Sul, nunca fui acolhido lá. É um estado que esmaga a população negra de todas as formas, a história do Mato Grosso do Sul é a história do colonizador branco e agropecuarista.”
As análises futuristas e catastrofistas esbarram no bom desempenho das cotas como política pública no país. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2010 e 2019, o número de negros nas universidades do país cresceu 400%. O Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2018 mostra que a participação de indígenas no ensino superior aumentou 842%, entre 2010 e 2017.
Concentração de ato organizado por mulheres negras em São Paulo (Rovena Rosa/Ag. Brasil)
Embora sejam 56% da população brasileira, negros ainda ocupam apenas 38% das vagas nas universidades do país. Apesar do índice, o pesquisador João Feres, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa), da UERJ, celebra as conquistas da política pública.
“A experiência com a Lei de Cotas no Brasil é excelente. Todos os estudos mostram que aumentou muito a participação, não existe outra razão razoável que não seja as cotas para explicar esse aumento enorme. Dito isso, os estudos do Gemaa mostram que a Lei de Cotas melhorou a forma como as cotas eram aplicadas, as tornaram mais inclusivas. Antes da lei, as cotas eram apenas para estudantes pobres, não incluía indígenas”, conta Feres.
Com o passar dos anos, o sucesso dos números de acesso da população negra nas universidades passaram a dividir o noticiário da Lei de Cotas com as tentativas de fraude. Por conta disso, algumas instituições de ensino superior começaram a adotar as bancas de heteroidentificação, que avalia a autenticidade da declaração do candidato sobre seu pertencimento à categoria de preto, pardo ou indígena.
Hoje, 64 das 69 universidades federais do país já possuem sua comissão de heteroidentificação, de acordo com levantamento da Defensoria Pública da União em parceria com a Universidade Federal de Ouro Preto. A banca não está prevista no texto da Lei de Cotas, mas precisou ser incorporada à aplicação da legislação. Entre 2003 e 2020, as universidade federais receberam quatro mil denúncias de fraudes, segundo a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.
“As comissões são reivindicação do movimento negro, é a forma que temos de garantir a lisura do processo. É a forma que temos de garantir que o sujeito que acessará as cotas é o negro. As comissões garantem que as vagas não sejam desviadas do seu sujeito de direito”, explica Zélia Amador, da Coalizão Negra por Direitos.
Em audiência pública, promovida pelo Tribunal de Contas da União (TCU), em 26 de junho deste ano, em respeito aos 10 anos da Lei de Cotas, Alfredo Macedo Gomes, Reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Diretoria Executiva da Associação Nacional das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), defendeu as comissões de heteroidentificação.
“A presença nas universidades das comissões de heteroidentificação foram eficientes. As universidades evoluíram nesse ponto, em relação ao método anterior, que era a autoidentificação. Essas comissões deram uma grande contribuição para garantir que a lei mantenha seu foco”, finalizou o reitor da UFPE.
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