Descubro motivos para viver nesta casa amparada nas alturasenvolto em solidão sem rimas, sem métrica,sem pleonasmos,
Flor dor amor removidos limpos na folhagemverde, verde platina, amarelo de abandono,tingida em vermelho de lamúrias nos fios do crepúsculo Aqui, no alto, posso dizer meus versos sem que ouçam minhas metáforas pobres e conclusões sem nexo.
O menino, aquele, que ensaiou papéis de herói, Já não existe.Morreu com as utopias e os pequenos deuses inventados no ano da iconoclastiaQuem restou?Faço a chamada dos vivos. Teresa, André, Cândido…Sempre há um a mais no rol dos mortos e ninguém sabe dizer Onde estão enterrados seus ossos, seus olhos, seu viço e vontades Para onde fogem os combatentes mortos?Em que eternidade repousam seus corpos cansados,açoitados pelas frustrações
Deste alto vejo um mar cinza azulado que se degrada em verde Na hora em que as gaivotas se recolhem.Deste ponto vejo a praia contaminada da baía,Sua margem de pedras
Mar escuro, espesso, petróleo,E não sinto o cheiro fétido das algas, detritos, peixes mortos, Que vão e vem, embalados pela águaLatas, plásticos, ferro, ferrugem, ossadas de um cãoE de um automóvel oldsmobil 47 de lataria rasgadaÉ possível purgar uma vida submersa na estupidez dos homens? Foi longa a noite, vácuo sem luz, só o fogo invisívelQue permanece e continua a incendiar por dentro.A noite das partidas das pessoas a quem amávamosNo lugar onde vivemos sonhos que ainda sonhohá quartos vazios, leitos desfeitos, móveis quebrados, poltronas sujas.As paredes em ruínas, marcadas pelas rachaduras,E pelos tiros.
Ergui esta casa no alto e me proponho a viver aprender as coisas simples, despir-me das transcendências,e acertar o ponto exato da fervurada água para coar o café.Reter as lembranças sem cultivá-las, Fazer o fogo, assar o pinhão,raspar o ranço de ódio na alma, Cuspir esse travo na gargantaE aprender a aceitar o amorPouco, quase nada,
Que jamais aparece quando o espero,Aqui estou só, não ouço os ruídos torturantes,Carros, buzinas, gritos, estridências.Não há discursos nem o repetido noticiárioDe crimes, roubos, políticos, ladrões, assassinos.A comédia da violência urbana.E estou liberto das mulheres loucas, domésticas,a ligar suas máquinas motores, aspirador, ruídos, liquidificador, barulho e a mesma canção de fundo a chorar o amor perdido interrompida pelos comerciais de cremes para rejuvenescer.
As mulheres que envelhecem me incomodamPorque me comovem em sua amarguraa sentir o trabalho subterrâneo do tempo nos seus seios.a pressa das rugas e das olheiras, o olhar que se perde na tristeza, enquanto esperam que a vida passe na sala sem luz,A murmurar a canção que só seus lábios podem cantar.Quanto ao amor, aguardo o acaso, confio no improvável,o amor não obedece a planos, nem é previsível no curso da vida. Eu ainda a procuro, ainda espero, mas quando penso em desistir, sinto que me faltam a rima,o sol, um buquê de girassóis, a árvore e a ave,o desenho de um sole as palavras da separação
Das paixões devo escoimar o que ficouna alma suja de restos, palavras gastasno cansaço de sentidos.Devo estar preparado para uma trama do acaso, talvez um desvio do olhar, o abraço que se demora e força a aproximação.Exilado, recluso e liberto, queroas coisas simples e uma vida mais lentaA luz inquieta de uma lamparinaantes que chegue a alvorada e seu lume forte Para voltar ao trabalho e às palavras Evitando o lado escuro, persistente,de um velório interminávelcom seu odor de cera queimada.Por isso procuro reaprender o simplesusar as ferramentas certas para construir um banco (um dia, talvez, um barco)E uma mesa de taboa apoiada em cavaletes cantar em versos simples, repetitivos,as coisas simples liberto como um sanhaço E viver a cada dia a ração de tempoe a ínfima porção de amorque ainda posso merecer.
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