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Não, ele não vem hoje, também! Procuro-o há dois dias. Disseram-me que está com virose e não tem aparecido para trabalhar. Peço papel e caneta, preciso comunicar-me de alguma forma, mesmo sem dizer-lhe o que realmente quero dizer. Pergunto como vai e desejo melhoras, assegurando-lhe saudades. Assino. Pode entregar a ele? .
– Claro! – o rapaz, solícito, apanha o papel, que não dobrei, e prende-o no quadro de recados. Acompanho seus movimentos com olhos ávidos, ansiosos, buscando alguma pista, algum sinal que me dê motivo para continuar ali, e esperar. Não há nada. Sorriso amarelo. Tchau! . A noite está fria, conforme previsão divulgada no jornal matutino. Decido caminhar um pouco, ignorando os perigos das ruas da cidade. Atravesso a Praça do Mitre. Os bares estão movimentados. Não me animo a entrar em nenhum. Sei que não o encontrarei. Volto. Percebo agora o artesão encolhido sobre um pano sujo, no meio da praça. Parece ter se esquecido de ir, ou talvez, não tenha para onde ir. Aproximo-me. Em meio às pulseirinhas, colares e brincos, chama minha atenção uma tela a óleo, que retrata uma mulher sentada de frente para um rio, de costas para o observador. . – É sua? – pergunto.– É. Gostou? – ele tem sotaque castellano. . – Que rio é esse? – pergunto, rebelando-me contra meu próprio senso crítico. . – É um rio. . – Qual a expressão do olhar dela? decido provocá-lo. . – Distanciamento…. ela está pensando. . – Em quê?- ironizo. . – Nas águas que passam. No curso sempre igual. No mar… – ele responde sério: .– Você sempre suporta gente como eu? – começo a me sentir imbecil. . – Oh não, não… como assim gente como você?! Nunca me perguntaram essas coisas. É bom, sabe? É bom poder falar…- ele quer me agradar. .– Você sabe retratar rostos? quero feri-lo. . – Não sou muito bom, não ! – confessa, tranquilo. . – E mãos? . -Também não! – continua sereno. . – Como são os pés dela? – ocorreu-me uma sincera curiosidade. . – Ah são lindos… Posso ver os seus? – ele dobra o corpo estendendo as mãos em direção aos meus pés. . – Não! – recuo, assustada e ofendida, encolhendo os dedos dentro das botas. . – Tudo bem, desculpe! – Ele volta a posicionar os braços sobre os joelhos. dobrados. – Os pés dela são delgados, a pele rosada e agora acho que estão frios, bem frios.- Ele dá uma risadinha. Tem os dentes bonitos e limpinhos. Surpreendo-me. Todo o resto dele parece sujo. . – Vendeu bem hoje? – quero mudar de assunto. . – Ah, as pessoas não estão comprando muito. . -Gosta do que faz? – olho suas criações sem tocá-las. . -Você quer o quadro, ou uma pulseira, ou colar? – ele me enfrenta. . – Quanto é o quadro? – pergunto com desdém. . – Quanto me da? – ele olha dentro de mim. . – Qual é o nome dela? – refugio-me. . – Qual é o seu nome? – ele ataca. . -Ela não significa nada para você? Não se inspirou para pintá-la? – disparo com mais emoção do que gostaria de sentir e demonstrar. . Ele me olhou sem expressão definida e começou a guardar seus trabalhos, cuidadosamente. Fiquei observando, parada, desapontada, mas desafiante, como uma criança mimada. Tudo pronto, ele colocou a mochila nas costas e ajustou-a ao corpo. O quadro ficara no chão. Apanhou-o, estendeu-o para mim. Não tirei as mãos dos bolsos do casaco. . – Se quiser, dê um nome pra ela e um rumo para seus pensamentos. Deixe-a meditar olhando o rio e depois, coloque-a de pé. Faça-a caminhar e buscar suas próprias respostas. O que vem de bom com o rio, segue com ele. O que pára na margem, é quase sempre, porcaria. E seu. Pegue! . Obedeci. Não me esforcei para encontrar o que falar. Fiquei olhando para o quadro, enquanto ele se afastava. . Como se chama? -gritei quando ele atravessava a Avenida Schimmelpfeng, na direção do bar. Sem se virar apenas levantou uma das mãos, num gesto que poderia significar “não amole”. . – Você! Como você se chama? Ele sumiu na esquina. . . Leia mais textos de Beth Vilasboas, aqui
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