– Como vai o doutor? — cumprimentou Ivone, cerimoniosa. Fechou a porta e sorriu:
– Tratei você de doutor. Esse velhote não me deixa em paz.
Na mesa um vaso minúsculo de cacto. Espetada em areia, na haste negra luzia pontinho escarlate.
– Incenso indiano, querido, para roubar teu coração!
Na janela a tarde bruxuleava. Envolto na nuvem adocicada, tossiu de leve: Ai, só me falta crise de asma. – Muito distinto!
O herói tomou-lhe as mãos e quis beijá-la, mas desviou o rosto.
– Que tanta pressa! Nem me achou bonita.
Um passo atrás, que a pudesse admirar: cetim negro, três voltas do colar dourado. Boca inchada de batom. Cabelo preto retinto, olho de sombra roxa – a última encarnação de Mata Hari.
– Está linda, meu bem.
A menina que escrevia bilhete no intervalo das aulas: Desta mujer que te quiere mucho, mucho, mucho! Travou das mãos, cruzou-lhe os braços nas costas:
– Agora não escapa.
O herói beijou o ar, galinha cega bicando às tontas. Ela sacudiu a cabeça com gritinhos de terror.
– Por que me convidou?
– Falar com você.
– Insistiu que estava sozinha. Não pensei que para conversar.
– Cruzes! Nunca imaginei você queria isso. Afastado na ponta dos braços:
– O mesmo olhar inocente do menino. Você é inocente?
– Você bem sabe — e forcejando para atraí-la, conseguiu derrubar um brinco.
– Viu o que fez?
– Depois eu acho.
– Ai, que horror! Me solte um pouco. Que tal um cigarro? Com dedos de ponta amarela acendeu um fósforo.
– Fuma demais.
– Tão aflita. . .
– Se quer, vou embora.
– Não — e segurou-lhe a mão, ainda com o fósforo. — Olhe: do lado que cair a cabeça está o meu amor.
A cabecinha negra rolou para ele.
– Gosta de mim, querido? Preciso tanto de alguém. Tão só desde que a mãezinha morreu.
– E teu marido?
– Coitado do Vivi.
Espreguiçavam-se nos cantos as primeiras sombras da noite.
– Quer umas uvinhas, querido?
Na ponta do filete ardia a brasinha — Ivone apresentou-lhe o prato com uvas geladas e um guardanapo engomado. No outro lado da mesa, o rosto em nuvem azul de fumaça. Cruzou a perna, exibiu o chinelinho de pompom vermelho.
– Nervoso?
– Nem um pouco.
– Eu sim. Nunca enganei o Vivi. Boa a uva, não é?
– Ótima. Você quer?
– Já provei.
Batia o cigarro no vasinho de cacto. Ali no ombro uma pinta de beleza.
– Um beijinho na tua pinta! No estremeção de peixe arisco:
– Sinto cócega. Ah, se o Vivi. . . Nem quero pensar!
– Onde é que ele está?
– Por aí.
– É bom para você?
– Muito. Atencioso, bem educado.
Apanhou na radiola o retrato de moldura prateada.
– Se não é parecido com você. Por isso goste dele. O primeiro beijo lá na varanda?
– Eu podia esquecer? — e roçou o lábio no ombro, errou a pinta. — Você era virgem?
– Que pergunta.
– É certo o que dizem do Vivi?
– Bem que noivo diferente. Pobre de mim, chorei de alegria. Moço prendado, falava línguas.
Só beijinho de muito respeito. Uma educação inglesa. Depois você sabe.
…
– Que foi que houve?
– Abri de repente a porta: aos beijos com o filho do porteiro! Aspirou o cigarro ao ponto de recolher as bochechas.
– Simpático teu apartamento.
– Quer conhecer?
Ivone indicou a cozinha. Abriu a porta do quarto:
– Desculpe a desarrumação.
O quarto em perfeita ordem, duas camas de solteiro. Desta vez conseguiu beijá-la, sem que retribuísse.
– Espere. Limpar os lábios.
– Mais um beijinho.
– Não quero manchar tua camisa.
Apanhou lenço de papel sobre a penteadeira.
Ele observou as costas até achar a pinta — agora deixá-la nuazinha. Junto da cama, a lâmpada no garrafão azul.
– Muito original.
Olhando-o pelo espelho:
– Não é mesmo?
Voltou-se: rubros como antes, grossos de batom. Ele começou a beijar- lhe o pescoço, uma veia pulsava forte. Correu os dedos, esquecidos na nádega — louco por vestido com botão.
– Como é que é?
– O que, meu bem?
– A gente tira?
– Que pressa, cruzes! — o biquinho de contrariedade. — Conversar um pouco.
– Tenha paciência, filha. Não é hora. Aborrecida, afastou-se dois passos:
– Está bem. Tire a roupa.
Sacou o vestido pela cabeça, tanta prática que nem se despenteou. Ele tirou o paletó.
– Um cabide?
– Penduro aqui mesmo.
De costas, jogou a calça ao pé da cama. Virou-se e o que viu? Ela de sutiã, anágua, chinelinho de pompom. Em cueca, nosso herói investiu. Ergueu a saia, surpreendeu a coxa no espelho — a matrona é avó torta da donzela. Para se consolar, fechou o olho e fungou-lhe no pescoço. Repelão violento o fez cambalear:
– Que é? Que foi?
– Espere um pouco.
Acendeu o cigarro, apanhou no guarda-roupa uma toalha, que estendeu sobre a colcha encarnada.
Nelsinho despiu a cueca, apenas de camisa e sapato. Ela o encarou e, a mão atrás, abriu o sutiã: horrendo peito flácido. Excitadíssimo ao vê-la tirar a calcinha, só de anágua. Que se debateu aflita:
– E o brinco?
– Que brinco? Ah, depois eu acho.
– Como é apressado, que horror! Vou lavar as mãos.
– Agora não. Depois.
– Tem de ser já.
Sem se confessar deprimido, o herói exibiu-se no espelho, admirou as suas graças. De frente e de perfil, erguendo a aba da camisa — grande cadela, deixa estar, ela me paga! Ivone saiu do banheiro, soltou a anágua, pisou sobre ela — nua, cigarro na boca! Desviou-se mais uma vez do abraço:
– Não tira o sapato?
Foi sentar-se na cama, acendeu novo cigarro na brasa do outro.
Nelsinho livrou-se do sapato. Trêmulo, beijava-lhe o braço, o pescoço, a orelha — lembra-se, querida, a noite na varanda?
– Cuidado. Eu te queimo.
Fumava sem pressa, a boca feroz, olho no teto.
– Sossega, meu bem. Olha a cinza na colcha.
Ergueu-se no cotovelo, amassou o cigarro no cinzeiro. De repente envolveu-o num abraço apertado. Sem explicação, deitou a gemer alto: Ai, ai, ai! Empurrou-o, sacudiu a cabeça:
– Bonito o teu olho esquerdo!
Agarrou-o com violência, entre ais lancinantes. O rosto afundado no cabelo, Nelsinho espirrou duas vezes.
– Que foi, bem? Resfriou?
– A velha asma.
Sem aviso, a defender-se com unha e cotovelo:
– Me machucando. Trocar de posição. Mais para baixo. De mau jeito.
Não desmanche o penteado.
Ele seguia as instruções, frustrado e miserável. Ivone enlaçou-lhe o pescoço e beijou-o, a gemer fora de tom. No meio do beijo, estremeceu a pálpebra, aos poucos abrindo o olho. Fixou-o no fundo da pupila, franziu a testa. Nelsinho começou a resfolegar, lavado de suor frio.
– Nervoso, bem? — melíflua, suspirou a bela.
Em desespero, fechando o olho, tornou a beijá-la: boca escarninha, cheia de dentes. Fio de baba escorreu no queixo, ela desviou o rosto:
– Incomodou-se hoje, não foi?
Inibido pela expressão de censura, o sulco na testa acusadora, ainda pediu:
– Me beije, querida.
– Não fique nervoso. Já passa.
– Você é que sabe — a voz sumida.
– Isso acontece.
Na separação dos corpos suados um estalo obsceno. Nelsinho deixou-se rolar de costas.
– Pois é. Acontece a qualquer um — com amargura medonha na alma.
– Bem quietinho — as palavras untuosas de doçura. — Como eu e meu marido.
Compassiva, afofou o travesseiro, que descansasse a cabeça. Alcançou lencinho na gaveta, enxugou-lhe a testa em agonia. Dois cigarros na boca, acendeu-os, estendeu-lhe um.
– Primeira vez? — a menina inocente na varanda. Não queria conversa, preocupado em não se distrair.
– Nunca me aconteceu.
– Será que das uvas? — os seios sacolejando com o risinho de pouco caso.
– Se a gente ficasse de pé?
De pé, não deu resultado: a visão medonha da nádega no espelho. Depois, sentados. E deitados retomaram os cigarros. Nelsinho de costas, ela apoiada no cotovelo, a soprar-lhe a fumaça no olho. Com a mão livre, Ivone ofereceu entre o indicador e o polegar o seio opulento; sem entusiasmo, ele sorveu o leite mais triste. O coração pulsava no travesseiro e rangia no colchão. Tornou o suor a escorrer-lhe da testa.
– Igualzinho ao Vivi.
Ivone aspirou fundo, soprou deliciada pelo nariz: uma vez com um homem. Abordada na rua. Na própria lua-de-mel. Nunca soube quem era. Em vez de indignar-se, recolheu-o no apartamento. Tristonho, Nelsinho observava o desejo afoguear-lhe as faces, rouca de perturbação. Engoliu em seco: esmagou a boca de beijos, com receio de que o empurrasse para rematar a frase. Entreabriu o olho a gozar o triunfo, notou a ruga incrédula na testa. Ai dele! a exaltação gloriosa esvaiu-se em derrota sem remédio.
– Não se canse tanto, meu bem. Pode ter uma coisa!
Concluiu em sossego a história, na verdade muito interessante.
– Com calor? Que abra a janela?
– Fique quieta. — E com humildade. — Não sei o que… A primeira vez.
– Meu maridinho é bem assim.
A vez do herói acender os cigarros. No silêncio, choro de criança no apartamento vizinho, um relógio ao longe deu as horas. Último clarão do crepúsculo na janela. Chegou até ele a fragrância enjoativa do incenso: Deus, ó Deus, por que não morri de asma aos cinco anos?
Ivone saltou da cama, os peitos bamboleantes, foi apanhar um fósforo na sala. Voltou com o pratinho:
– Não quer acabar as uvas?
Deitado, beliscou dois e três grãos. Chupou o sumo, devolveu a casca ao prato. Apanhou outro bago. Tão desconsolado, em vez de cuspir, engoliu a semente e a casca.
Dalton Trevisan (1925-2024), escritor paranaense. Autor de livros como Cemitério de Elefantes, O vampiro de Curitiba, A polaquinha e O maníaco do olho verde, entre outros títulos. Sua obra foi traduzida para diversos idiomas, como o inglês, o espanhol e o italiano. Em 2012, Trevisan ganhou o prêmio Camões de literatura. Vivia em Curitiba (PR).
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.