Discente do quarto período de Serviço Social, Ivone Felintro de Oliveira vê no curso uma forma de se ajudar e ajudar outras pessoas. Aos 57 anos, Ivone Felintro de Oliveira é determinada. Mesmo depois de passar por três acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e ser diagnosticada com câncer, Ivone consegue manter uma rotina que, para muitos, […]
Aos 57 anos, Ivone Felintro de Oliveira é determinada. Mesmo depois de passar por três acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e ser diagnosticada com câncer, Ivone consegue manter uma rotina que, para muitos, seria impossível de cumprir. Diariamente, ela se reveza com naturalidade entre o trabalho doméstico e as tarefas em uma oficina mecânica e ainda consegue encontrar tempo para pesquisas e outros compromissos exigidos pela graduação. Além de conciliar o tratamento oncológico, Ivone ainda se dedica à restauração de um objeto de desejo de muitos colecionadores: um Fusca 1967.
Ivone Felintro de Oliveira, estudante do quarto período da graduação em Serviço Social, na Unila
“Quando criança a gente não tinha condições de comprar carro novo. O que a gente tinha a possibilidade era Fusca, Brasília ou Chevette”, conta a discente do quarto período de Serviço Social, quando questionada sobre o motivo de se dedicar à revitalização de um antigo Volkswagen. A facilidade proporcionada pelo modelo também pesou na escolha: “De Fusca eu entendo um pouco da mecânica. Qualquer coisa é só empurrar, aí você anda com um platinado no bolso ou na guantera do carro, uma lixa, e já resolve o problema do Fusca. E uma bobina, né?”, explica, ao mesmo tempo em que dá indícios de sua trajetória: guantera, porta-luvas em espanhol, remete ao período em que viveu em Assunção.
Entre ferramentas, peças de carros e pneus, Ivone relata mais um pouco de sua história. De uma cidade próxima a Campo Mourão (PR), ela imigrou com a família para São Paulo, onde conheceu o futuro marido e casou-se aos 19 anos. No final da década de 1980, o casal mudou-se para a capital paraguaia, onde permaneceu por mais de uma década. “Eu só comecei a trabalhar em mecânica quando eu me mudei para o Paraguai e não tinha o que fazer. Pois não sabia em que trabalhar. Meu ex-marido tinha chapeação e eu comecei a mexer com Fusca, com Maverick e comecei a gostar”, relembra, saudosa. Já sem o esposo, Ivone retornou ao Brasil em 2002 e passou a morar com os dois filhos em Foz do Iguaçu.
A restauração do fusca avança, em mais um exercício de paciência e perseverança de Ivone.
A UNILA somente entrou na vida desta brasileira depois que, em 2017, ela foi vítima de três AVCs, que lhe prejudicaram principalmente a fala. “No terceiro AVC, eu fiquei internada oito dias e perdi a fala. Eu sabia ir a um local, mas não conseguia explicar como chegar lá. Eu só fazia gestos”, recorda, visivelmente emocionada. Como os AVCs também lhe prejudicaram a coordenação motora, Ivone passou por um longo tratamento até apresentar, gradativamente, melhoras, mas ainda não conseguia ler nem escrever.
Para garantir a reabilitação de Ivone, a psicóloga que a atendia sugeriu que a então paciente voltasse à escola: proposta inicialmente rechaçada. “Eu falei: ‘não vou! Eu não sou criança para voltar para a escola. E outra coisa: eu não quero’”, recorda. Ao argumento, a médica respondeu que seria a única forma de reabilitar com mais celeridade, já que “a informação estava no cérebro”, mas Ivone não conseguia processar.
A volta aos bancos escolares se iniciou pelo Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Com receio de retornar sozinha, Ivone contou com a companhia de Demétrio Rojas, o Beto, amigo da família há anos e proprietário da mecânica em que ela trabalha. A incerteza de retornar aos estudos se devia ao medo de não ser bem recebida pelos colegas ou ser discriminada em razão da dificuldade na fala. “Mas todo mundo era bem legal. Era EJA, então eram todos adultos”, complementa. Os estudos, que à época já provocavam uma pequena melhora na escrita de Ivone, tiveram que ser repensados logo em seguida, com a pandemia de COVID-19 e a adoção do ensino remoto, em que o novo desafio estava centrado no desconhecimento da tecnologia.
Vencida esta etapa e com a volta das aulas presenciais, a próxima batalha se deu ao final de 2023, com o Exame Nacional do Ensino Médio. “Não sei como fiz, mas passei”, comemora a aluna.
Com desafios vencidos, a escolha pela UNILA veio de forma quase natural. Segundo Ivone, o conselho de um amigo médico pesou na decisão: “Ele falou: ‘Vai, tenta fazer Serviço Social’. Eu respondi: ‘Por que Serviço Social? Nem sei do que se trata esse curso’. Daí ele falou: ‘Exatamente, para você se ajudar e para você ajudar as outras pessoas’”, narrou. Relutante, a então candidata a uma vaga na instituição argumentou que, em razão de seu estado pós-AVCs, o que desejava era ajudar a si mesma e “ajudar os outros só se for uma consequência”. “Daí ele falou: ‘Mas com o tempo você vai conseguir ajudar os outros’. Daí eu falei: ‘Tá bom, então vamos tentar’”.
A escolha, segundo Ivone, não poderia ter sido melhor, pois o curso “abriu uma janela que nunca tinha pensado, nem visto as possibilidades”. “Como que eu nunca pensei nessas coisas? Tem tanta possibilidade de ajudar”, completa.
Ivone (segunda, a partir da esquerda) em reunião de estudos no curso de Serviço Social da Unila
Em meio a todas essas mudanças, há cerca de um ano Ivone sofreu mais um revés: o diagnóstico de câncer. Apesar do choque inicial, ela segue otimista e em tratamento, além de ter em mente que há muitos em situação pior. Tratável, a doença, segundo sua médica, exige cuidado constante. “Se eu tomar certinho, não vai precisar fazer quimio ou radioterapia. A única coisa que me incomoda é que os remédios dão muito enjoo”. Como a prescrição determina o uso da medicação três vezes ao dia, os efeitos colaterais são constantes. O que acaba causando irritabilidade, amenizada com o uso de chás calmantes. Já a força para o enfrentamento vem do trabalho, da dedicação à reforma do Fusca e dos estudos: “Assim…, se não fosse a UNILA… é uma válvula de escape, sabe?”. Emocionada, a discente confessa sentir paz ao chegar à Universidade.
Parte dessa paz é propiciada pelas colegas e professoras do curso, que a acolheram. Édina Vergara, docente que esteve à frente da turma nos dois últimos semestres, confessa que foi descobrindo as potencialidades de Ivone gradativamente, por meio do convívio. Como explicou, antes de assumir uma turma, os docentes recebem orientações do Departamento de Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência (DAIPCD) (veja box abaixo), ocasião em que são repassados detalhes de como deveria ser desenvolvido o processo pedagógico dos alunos atendidos. Por ser pesquisadora das questões de inclusão desde os anos 2000, Édina disse ter se interessado “profundamente” por Ivone e buscou compreender com mais proximidade quem era a aluna.
Esta aproximação mostrou-se simples, em razão da personalidade de Ivone: “Ela tem uma interação maravilhosa com a turma. É uma pessoa extremamente receptiva, que chega antes de todo mundo”. Foi por meio dessas interações que Édina aumentou sua admiração pela discente. Conforme analisa a professora, a UNILA por si já é um fenômeno. E se a instituição já possui uma caminhada com a diversidade e um propósito inclusivo, todos podem e devem “ir muito além”. “E ao descobrir que a Ivone sabe coisas incríveis de Física, Matemática e da realidade social, a partir do seu trabalho de mecânica, eu fico encantada. Fico imaginando o quanto uma assistente social que vem das relações sociais populares pode fazer em circunstâncias semelhantes. De trabalhar por direitos sociais nossos, dos trabalhadores como um todo”, contextualiza.
As particularidades de Ivone Felintro de Oliveira, surgidas após os AVCs que a acometeram, fazem com que a discente de Serviço Social seja uma das 84 atendidas pelo Departamento de Acessibilidade e Inclusão da Pessoa com Deficiência (DAIPCD). Uma das unidades da Secretaria de Ações Afirmativas e Equidade da UNILA (SECAFE), o departamento atua no atendimento aos estudantes com deficiências desde o seu ingresso, com foco no acolhimento, na sua permanência e na formação desse estudante.
Segundo Roberto Bernal Mazacotte, chefe da unidade, os ingressantes por cotas para PCDs são atendidos pelo departamento assim que ingressam na Universidade. Nesses casos, são enviados e-mails informando sobre o setor e solicitando aos ingressantes que busquem a unidade e o atendimento seja iniciado.
Porém, nos casos em que os estudantes entram por livre concorrência ou processos internacionais, é necessário buscar a unidade. “A política respeita a autonomia do estudante e busca a atuação conjunta com outras unidades, para que estas sintam a demanda, percebam o estudante na Universidade e assim todos nós consigamos, a partir dessas relações, estabelecer um trabalho com eles”, explica Mazacotte.
Estudar é gratificante! A discente conta “sentir paz ao chegar à Universidade.” – Imagens: capturas de tela
A primeira interação com o estudante PCD é uma conversa visando identificar seu processo histórico educacional. “Buscamos recolher dele as práticas mais efetivas de aprendizagem e pensar em estratégias relativas ao curso de como ele terá um aprendizado mais efetivo”, comenta o chefe do departamento. Após esta primeira conversa, o DAIPCD convida o curso escolhido pelo estudante e profissionais ligados à área de deficiência dele para que seja montado um plano de atendimento educacional individualizado. “O plano é enviado para os professores sempre nas matrículas de cada componente curricular, semestralmente. Ele também pode ser revisto, pode ser atualizado e, assim, a gente tenta manter a melhora na condição de permanência do estudante”, completou.
Estudantes podem buscar o DAIPCD pessoalmente, na sala C 105 da unidade Jardim Universitário. Informações podem ser solicitadas também pelo e-mail nucleo.acessibilidade@unila.edu.br ou por WhatsApp, pelo número: 45 3522-9918.
Guatá significa caminhar na língua guarani. E nos nomeamos assim porque é este o verbo mais apropriado para distinguir o esforço humano na procura de conhecer a força das próprias pernas conjugada ao equilíbrio de tatear o tempo e o espaço.
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