Sensibilidade e qualidade estética são a chave do sucesso do gênero – Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
De BDF com Valentina Gindri /DW A boneca de pano que fala, o menino com uma panela na cabeça, e a bolsa amarela pesada de desejos: as narrativas e personagens da literatura infantil brasileira formaram gerações de leitores. Mas além de povoar o imaginário nacional, as obras infantis do país têm ganhado destaque no cenário internacional.
Neste ano, o Brasil é o único país com finalistas nas duas categorias do prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infanto-juvenil. A autora Marina Colasanti concorre entre os escritores e Nelson Cruz disputa entre os ilustradores o prêmio organizado pelo Conselho Internacional sobre Literatura para Jovens. Os vencedores serão anunciados em 8 de abril, na Feira do Livro de Bolonha.
O Brasil já venceu o Hans Christian Andersen outras três vezes: Lygia Bojunga em 1982, Ana Maria Machado em 2000 e, na categoria ilustração, Roger Mello em 2014. O prêmio é concedido ao conjunto da obra. Em número de premiações, o país ocupa a 7ª posição, atrás de EUA, Alemanha e Japão, entre outros, e, ao lado da Argentina, é praticamente o único do chamado Sul Global a conquistar esse reconhecimento.
O país possui ainda vencedores em outras premiações importantes, como o Youth Media Award, dos Estados Unidos, e o Chen Bochui International Children’s Literature Award, da China. Já as editoras brasileiras têm aumentado em número e receita sua participação na Feira do Livro de Bolonha, o maior e mais importante evento internacional para profissionais do setor de livros voltados à infância.
Esse sucesso se deve principalmente à qualidade estética, aos temas universais e à sensibilidade presente no gênero. “A literatura brasileira começou a ser divulgada no exterior pelas temáticas exóticas do Jorge Amado. Poderíamos até pensar que a literatura infantil teria um mesmo caminho. Mas não. Não existe um Jorge Amado na literatura brasileira para criança”, afirma Regina Zilberman, pesquisadora especialista em literatura infanto-juvenil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
As primeiras produções literárias brasileiras voltadas à infância aparecem no final do século 19, associadas à escola. “No início, se confundia muito com o livro didático, era bastante pedagógica. De um primeiro momento, vale destacar Figueiredo Pimentel, que adaptou contos de fadas de tradição europeia, e Olavo Bilac, que escreveu poemas para crianças com tom ufanista”, destaca Zilberman.
Mas é com Monteiro Lobato, a partir de 1920, que a literatura infantil brasileira dá um salto. “Lobato cria um espaço lúdico até então inexistente e que é atual até hoje. É a figura mais importante, aquela que inspirou toda uma obra feita à imagem da sua”, explica Zilberman.
Com a Reforma do Ensino em 1971, que promove esforços para universalização do ensino básico e torna obrigatório o estudo até a 8ª série, a literatura infantil brasileira ganha mais impulso. Neste período, surgem alguns clássicos do gênero, em muitos dos quais o protagonismo é dado às personagens crianças. Zilberman destaca a presença de personagens meninas muito ativas, desobedientes e questionadoras, presente em obras como A fada que tinha ideias, Reizinho mandão, A Bolsa Amarela, Bisa bia, bisa Bel.
O mundo urbano, porém, tarda a entrar na literatura infantil brasileira. É apenas no início dos anos 1980 que o cenário da cidade invade as obras, carregando temas de desigualdade social e degradação ambiental.
O gênero também merece destaque por sua ousadia. “Foi o primeiro gênero literário que enfrentou as questões da ditadura, manifestou a ânsia de mudança e rebeldia. O tema da identidade afro-brasileira também esteve presente desde muito cedo”, acrescenta Zilberman.
A literatura infantil brasileira é polifacetada. Há a presença de tradições lendárias, que resgatam narrativas dos povos originários ou população escravizada e se diferenciam das tradições europeias. Há também um forte foco no ambiente familiar, de conflitos entre pais, filhos e irmãos. Mas não faltam grandes aventuras ou a abordagem de temas mais intimistas, além dos dilemas do mundo interior. “Recentemente, também vemos alguns assuntos que parecem candentes surgirem, como homofobia, racismo, questões de gênero”, aponta Zilberman.
Para Dolores Prades, especialista em literatura infantil e juvenil e diretora da Revista Emília, a multiplicidade de origens, temáticas e influências se destaca na produção brasileira voltada à infância. “Temos muitas vertentes, ricas e diferentes. A edição não se resume mais a Sudeste. O Nordeste é muito diferente, o Sul tem características muito próprias. Então essa história oficial com origem em Lobato é, na verdade, uma realidade muito mais complexa”, expõe.
Prades também é consultora para a América Latina na Feira de Bolonha e frequenta regularmente a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, maior evento literário da América Latina. Para a especialista, essas ocasiões são fundamentais para fechar negócios com outros países e servem como um termômetro para as tendências do mercado editorial.
Segundo ela, editoras com propostas bem consolidadas conseguem encontrar espaço em casas editoriais de outros países. Porém, a especialista lembra que existem diferenças culturais que são muitas vezes intransponíveis para o público. Essas diferenças transpassam a dimensão do objeto livro pois dizem respeito ao entendimento do que é infância. “Temos diferenças enormes nas infâncias pelo mundo. Existe um universo por trás de cada concepção do ser criança”, pontua Prades.
O tempo em que países vêm desenvolvendo suas produções também impacta na sua projeção internacional. “Alguns países têm uma tradição ininterrupta por séculos, como a Inglaterra, enquanto outros, como a Espanha, lidaram com a Guerra Civil e a ditadura, interrompendo uma modernização. A América Latina também teve esses cortes”, aponta a pesquisadora espanhola de livros infantis Ana Garralón.
Os especialistas da área são unânimes em dizer que a literatura voltada às crianças não precisa ensinar um conteúdo, passar uma mensagem ou ser pedagógica: basta que seja literariamente potente. O encanto não está na temática, nem na voz do narrador, mas no espaço criativo e nos mundos e experiências que ele permite explorar, nas personagens agindo e na chance de se identificar com essas personagens.
“Ainda hoje se pensa que os livros infantis deveriam ensinar alguma coisa. Isto é muito prejudicial porque o que acaba ganhando mais importância do que o como. Isso faz com que a literatura perca a qualidade e a surpresa. E as crianças não são estúpidas: sabem imediatamente quando estão sendo tratadas com autonomia e quando não”, afirma Garralón.
Zilberman corrobora tal visão: “A literatura é um elo de acesso da criança ao mundo e oferece possibilidades de soluções de problemas. Muito da literatura que trata de questões de gênero hoje em dia está mais pedagógica do que deveria ser. Querem ensinar tolerância, mas de cima para baixo, e não é assim que a coisa funciona”.
“Tem muitos livros no mercado que poderíamos até chamar de autoajuda infantil. E algumas escolas adoram esse tipo de obra. Muito do menosprezo com a literatura infantil enquanto arte vem por esse excesso de obras pedagógicas que circulam por aí. A literatura é aquela questão: não serve para nada e serve para tudo ao mesmo tempo”, opina Prades.
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