Jacira Roque de Oliveira – mãe de Catia, Catiane, do produtor Evandro, o Fióti, e de Leandro, o Emicida – é uma mulher forte, sonhadora, sensível e batalhadora, que aprendeu desde cedo a lidar com dificuldades.
Autodidata, lia e escrevia, mas ouvia que seu destino não era o de sonhar e contar histórias, mas sim servir os outros como empregada doméstica.
A infância difícil, a educação no convento e suas experiências viraram livro, que apesar de triste, por narrar o amadurecimento precoce de uma criança que teve que ser mãe muito cedo e passou por desafios diversos, conseguiu transformar a dor em arte.
Aos 54 anos de idade a também artista plástica lança seu primeiro livro biográfico “Café”, das editoras LiteraRUA e Laboratório fantasma. Dona Jacira convida os leitores a se servirem de um bom café de coador, enquanto embarcam com ela em uma viagem de memórias, dor e resistência.
Confira o bate-papo que a autora levou com a reportagem do jornal Brasil de Fato:
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BF – Jacira, pra começar o nosso bate-papo eu já lanço a pergunta “como é olhar sua trajetória e contrariar uma sociedade patriarcal, classista, racista?
Dona Jacira – Eu me sinto como uma pessoa portadora de sonhos indisciplinados. E sou persistente, uma pessoa perseverante. Então estou realizando agora o que sempre quis fazer. Tive que fazer várias coisas, dar várias voltas pelo mundo, mas a cada vez que vinha essa angústia de estar em um lugar em que eu queria estar e não podia eu tinha uma esperança dentro de mim. Sempre tive uma entidade dentro de mim que me forçava a acreditar, mesmo quando não queria acreditar ela me forçava e muitas vezes eu brigava comigo falando sozinha “não vai dar certo, não vai dar certo. Ninguém aceita”. E hoje eu sou muito agradecida por essa voz, da minha intuição que não me deixou desistir.
BF – Você poderia contar como é escrever um livro biográfico, com tantas memórias e como você ressignificou a dor, de vários percalços da sua vida.
Dona Jacira – Na minha infância, na infância de pessoas de um tempo atrás, ninguém nos pegava e levava para lugares onde tinham contadores de história. Os contadores de história do nosso tempo são aonde a gente está, são as mulheres, os fazedores de coisa, os vendedores. Nós somos um Brasil real, e no Brasil real as histórias estão postas. Nós não somos como este Brasil caricato que precisa sair de si, sair do seu universo para buscar essas histórias.
No princípio eu quis morrer, depois eu tive muito ódio. Depois eu achei que tinha que abandonar as pessoas que não me ajudaram. Foi uma desconstrução de mim mesma, uma destruição. Mas quando eu tive os meus filhos eu tive uma esperança. Eu não conhecia a força deste amor que é de ter pessoas que saíram de mim e que dependiam de mim. E quando eu fui lutando para criar os meus filhos da melhor forma possível eu fui entendendo algumas razões. Não a razão do convento, mas as razões da minha mãe que teve que me deixar lá, a razão dessas mulheres que não têm apoio dos homens, das famílias. E é estranho, porque aquelas freiras, aqueles diabos eram estranhos. E não é porque a pessoa está ornamentada de roupas que dizem que é de quem tem fé, que elas têm fé. Elas não eram, eram outras mulheres magoadas, doentes que estavam enfiadas naquelas saias. E como elas não podiam descontar em quem as colocou ali naquele inferno, quem que elas tinham pra descontar? Eu!
Então foi tardiamente, depois que eu voltei pra escola, quando a situação econômica melhorou, aí eu começo a contar com a sensibilidade desse caminho que eu passei e ao mesmo tempo de me quebrar, porque eu virei uma pedra pra resolver as minhas questões. Então, depois com o passar dos anos eu vou entrando em uma necessidade de sensibilizar, porque eu estava ficando uma pessoa muito amarga. Os ciclos vão se fechando e a gente vai entendo as razões das razões. Eu não me via negra, eu não entendia a viuvez da minha mãe. Eu também fiquei viúva muito cedo e eu fui entendendo. O ódio foi saindo de mim e foi entrando essa vontade de realmente buscar este sonho indisciplinado que eu te falei.
BF – E o livro Café tem esse nome, que já faz alusão ao café que a gente gosta tanto e ele é um bate-papo, Dona Jacira? É a senhora contando as suas experiências, se abrindo, recebendo os leitores para contar um pouquinho da sua história de vida?
Dona Jacira – Ele é um bate-papo. Sou muito ligada nos cheiros. Não só do meu tempo, mas nós mulheres temos uma vida muito silenciosa e como a minha fala não tinha importância e a minha escrita era desacreditada, restou em mim um gosto pelo cheiro, o cheiro da terra, da chuva, o cheiro da comida e o cheiro da cozinha da minha mãe. Então este café, que a fumaça me levava a programa do Zé Béttio, me levou a conhecer o Luiz Gonzaga.
Enquanto a minha mãe fazia o café e essa fumaça passeava pela casa. Então até hoje, quando eu sinto um cheiro de café, não é qualquer café, é o café que é de coador, que remete a essas memórias. E eu vou passando, voltando nas coisas que ficaram em mim, na minha infância, que às vezes eu acho, quando fico chateada, que foi uma infância que não aconteceu. Fiquei adulta muito cedo por conta dessas coisas que eu passei.
BF – Queria falar um pouquinho sobre a música mãe, que seu filho Emicida escreveu pra você e que é bem forte e traz nos versos uma frase que me chama muito atenção que é “Vi Deus e ele é uma mulher preta”. Aí eu queria que você falasse um pouquinho de como você vê esse amor e esse reconhecimento.
Dona Jacira – Quando o Leandro fez essa música ele pediu pra que eu escrevesse alguma coisa eu narrei exatamente o dia que ele nasceu. E assim, eu acredito muito nessa história de que Deus é uma mulher preta, mas Deus pode ser uma mulher preta, Deus pode ser um índio. E na verdade eu acredito nos muitos deuses, uma variação de deuses e eu também tenho plena consciência de que esse Deus único, que o catolicismo trouxe também é um avatar maravilhoso, mas que por conta de histórias, de querer apagar a história das pessoas que construíram o Brasil ele foi sendo embranquecido e transformado. Então eu acho, eu acho não, eu tenho certeza que Deus pode ser sim uma mulher negra, como tantas deusas que nós temos, que são negras. Então quando eu pensei nessa música foi uma narração realmente disso, do nascimento do Leandro, do que as pessoas disseram, das coisas que aconteceram com ele .Ele andou muito cedo, falou muito cedo e ele sempre me chamava a atenção pelas coisas que ele dizia, desde muito cedo. Então eu acho que estou devolvendo isso a ele.
Tem uma frase nessa música que as pessoas também comentam muito, quando eu falo que “filho pode ser pro mundo, mas o meu é meu” . E eu sempre respondo que meu filho roda o mundo, mas se ele tiver uma dor de barriga, uma tristeza, uma agonia, não é para os fãs que ele liga, é pra mim. Então meu filho é meu sim.
BF – Como a gente tem o costume aqui No Jardim da Política, de pedir para os entrevistados e entrevistadas pedirem uma música, que seja significativa pra eles, que tenha marcado. Aí a gente queria que você pedisse uma música e explicasse brevemente o porque dessa escolha.
Dona Jacira – Como você mexeu comigo com essa música, eu gostaria de pedir essa música mãe. Que até eu choro quando ouço. Eu gostaria, por toda a emoção que ela me dá, porque eu já havia de alguma forma abortado meus sonhos e quando meus filhos se elevam economicamente eles voltam, me ajudam a realizar o meu sonho. Não é toda mãe que consegue contar essa história, eu sou privilegiada.
Serviço:
O livro biográfico café pode ser encontrado no site da Laboratório Fantasma e da editora LiteraRUA
__________________Norma Odara / Brasil de Fato
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