Foto: Henri Ballot/Revista O Cruzeiro
Em 1958, o repórter Audálio Dantas ao cobrir uma reportagem na favela do Canindé, situada na cidade de São Paulo, conheceu Carolina de Jesus que lhe mostrou o diário que estava escrevendo. Ele ficou impressionado com aquelas narrativas e se prontificou a buscar uma editora para que ela pudesse publicá-lo. A obra “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” chegou ao público em 1960. De desconhecida favelada, Carolina de Jesus tornou-se uma escritora admirada no país. O livro foi um sucesso de crítica entre incontáveis estudiosos “O tempo operou profundas mudanças na vida de Carolina, a partir do momento em que os seus escritos – registros do dia – a – dia angustiante da miséria favelada foram impressos em letra de fôrma, num livro que correu mundo, lido, discutido e admirado em treze idiomas”, disse Audálio Dantas. .
No diário, Carolina de Jesus narrou o cotidiano vivenciado na favela, e utilizou de uma linguagem simples com significados profundos. Ela abordou temas como a fome, condições precárias de habitação, racismo e machismo, violência doméstica e sexual, educação infantil, maternidade, política, capitalismo, alcoolismo, e tantas outras questões que atravessam e pioram a vida do povo brasileiro. Emocionar-se com a leitura dessa obra é uma condição inescapável. .
A fome continua Dra. Carolina!
. Eu não consigo falar de Carolina de Jesus sem lembrar-me do passado. Rememoro episódios tristes que passei com a minha família por conta da miséria; naquela época, alimentar-se era exatamente um “espetáculo”. Um desses episódios ocorreu nos anos oitenta. Perto de casa existia um açougue que comercializava sobras dos cortes de carnes: ossos, gorduras, nervos, sebos etc. Era tudo misturado. Quem desconhece a miséria dirá que jamais compraria essas sobras, mas porque não compreenderam que a sobrevivência indigna não oferece muitas opções. Os restos saciaram muitas vezes a fome lá em casa. Num certo dia a minha mãe pediu para que eu fosse comprá-los. Uma das mulheres que estava na fila do açougue ficou curiosa com o meu pedido e perguntou qual era o preço dele, depois concluiu “acho que vou levar um quilo para o meu cachorro”. Eu fiquei destruído por dentro. A minha mãe chorou quando contei a ela. .
No ano passado diversas reportagens mostraram as pessoas passando fome, revirando lixos na busca de alimentos, e “filas do osso” se espalhando pelo país. De acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em 2022, um pouco mais de trinta e três milhões de pessoas não tinham o que comer. Isso é estarrecedor! E sabemos muito bem que a cor que predomina entre os famintos é a negra. Carolina de Jesus já tinha refletido sobre o retrocesso do mundo nesse quesito fundamental para a sobrevivência humana “Para mim o mundo vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer ‘Quem escreve isto é louco’. Mas quem passa fome há de dizer: Muito bem, Carolina. Os generos (sic) alimentícios deve ser ao alcance de todos.” .
Carolina de Jesus deixou de morar no quarto de despejo, publicou outros livros, mas não escapou da pobreza. Em 2021 ganhou o título doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Faleceu em 1977.
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