.
Cássia Maria saiu da Rio Branco e foi descendo a Avenida Brasil, num sol de doer a cabeça. Os homens ocupados com os arremates da obra de revitalização da avenida, descansaram ao apreciá-la. Ignorou-os. Sentia o suor escorrer sob um uniforme, em nada adequado ao verão 40° de Foz do Iguaçu. Seu corpo pendia para um lado, sob o peso da bolsa. Caminhava com passos tão largos, quanto lhe permitia a saia justa, fendida no início da coxa direita. Estava louca para entrar na primeira loja com sistema de ar central, daqueles que refrescam até a alma da gente. Procurando seu oásis, ia mirando a própria imagem refletida nas vitrines empoeiradas e resmungando mentalmente: “que barriga é essa?” “Não devia ter almoçado tanto”! “Malditas cesarianas”… Nessa atividade mental, descuidou-se do caminho, tropeçou e catou cavaco, indo direto pra cima da banquinha de um camelô. O vendedor estrilou:
– Que é isso dona? Tá bêbada?
Afobada ela desvirou o pé, preocupada com o estado da meia fina e do sapatinho preto de listrinha vermelha. Meia e sapato intactos, deu atenção à dor no tornozelo intumescido. Gemendo, curvou-se para alisar a perna e, só então, percebeu que alguém a segurava pelo braço.
Desvencilhou-se bruscamente, aprumou o corpo e, furiosa, tomou os óculos da mão do indivíduo, ajeitou o cabelo, a camisete e a bolsa no ombro. Partiu batendo os saltos com mais força que o comum. Esses per homens! Que droga de reforma é essa, que nunca acaba! Calor, poeira, pedra! E essa gente toda na rua? Tão comprando ou não têm o que fazer? Não têm caras de turistas! O comércio tá ruim… essa confusão na ponte…
Quero só ver pra onde é que vão esses camelôs? Após uns cem metros de marcha pesada percebeu que mudara de rumo. A ira, o cansaço e a humilhação não lhe permitiram voltar em cima do rastro. Entrou na primeira porta. Jogou-se em uma poltrona, fechou os olhos e aspirou profundamente o ar fresco da sala. Ficou assim alguns segundos…
– Moça… Moça!
Ela abriu os olhos. Uma jovem lhe oferecia um lencinho de papel, com ar preocupado.
– Ah! Prá mim?- Zonza, sentiu que lhe escorria no queixo um fio viscoso.
– Uh, que nojo!
– Ele vai atendê-la agora. Pode entrar.
– O quê? Quem?
– O Doutor…- a jovem apontou para o médico parado na porta da sala.
– Não… – ela tentou desfazer o mal entendido.
– Como está o tornozelo?- Ele andou em direção a ela.
– Doendo. – Como é que ele sabe?
– Deixa eu ver isso. – Ele se abaixou e tomou-lhe o pé ferido, descalçando-o.
Meu Deus, o chulé! Ela encolheu a perna, gritando:
– Não, não! Tô atrasado pro trabalho! – Enfiou o sapato e levantou-se de um salto.
– Calma, calma! – pediu o médico ainda acocorado.
– Estou calma… mas tenho que ir! – respondeu entre dentes e já se encaminhando para a saída.
– Dormindo aí na poltrona, não parecia ter tanta pressa. – Ele não escondeu sua irritação.
Ela hesitou, tornou a olhar para ele, com incredulidade.
– Dormindo, eu?
– Hum, é louca mesmo!
– Louca é sua mãe! – concluiu, virando-lhe as costas novamente.
– Ah, vai trabalhar, vai! – disse ele, com desdém.
– Vou mesmo! – Ela entreabriu a porta….
– E olhe por onde anda, pra não cair em cima dos outros na rua…
– Ahhhh! – seu corpo se enrijeceu, crisparam-se-lhe as mãos. Soltou o trinco e voltou-se. Havia ódio em seus olhos, na boca e em cada célula do seu rosto lívido.
Ele, porém, de braços cruzados, ignorou aquela performance e emendou:
– E devolva meus óculos antes de ir. Ela ficou ali, parada, olhando para além dele.
Processando as informações em sistema lento, tateou o decote. Carregava dois pares de óculos escuros. Enquanto puxava os fios daquela trama confusa, sua expressão foi se suavizando até que baixando a cabeça, levou as mãos ao rosto, num gesto pueril:
– Que vergonha! Era você! Mas o que tá fazendo aqui?
– Eu trabalho aqui.
– Eu não vi… eu… dormi mesmo?!
Então ela caiu na risada. Ria e sacolejava-se. Sentou-se para rir melhor. Pediu água, outro lenço, muitas desculpas. Entrara ali só para fugir do calor e se acalmar um pouco. Ele viu graça na loucura dela e na coincidência do reencontro. A secretária achou o fim da picada, embora mantivesse um sorrisinho conveniente.
Ao examiná-la, o médico constatou que seus tornozelos eram naturalmente inchados. Sugeriu o consumo de mais água e menos cerveja, caminhadas diárias e elevação dos pés. Receitou-lhe um spray antisséptico.
A essa altura, porém, o diagnóstico que interessava a ela era sobre aquele “caso raro” em cujas mãos caira. Aliás, mãos grandes, dedos longos e grossos, muito sugestivos, de acordo com as teorias de sua melhor amiga. Nos ombros largos, o pescoço parecia vigoroso, o rosto de traços fortes, não apresentava uma beleza fácil, porém os olhos tinham uma expressão marota, pintada de castanho claro. A boca semioculta pelo bigode grisalho, expunha o lábio inferior carnudo e rosado. Os cabelos eram macios e fios prateados cintilavam à luz. E o perfume lembrava relva orvalhada.
Ao despedir-se ela exibiu seu melhor sorriso. Enquanto apertavam-se as mãos, avaliou a altura daquele homem. Ainda sorrindo deu tchauzinho à secretária e, rebolou consultório afora.
Na rua quis cantar, correr, gritar. Galgou os entulhos, sorriu para os operários, percebeu o azul maravilhoso do céu de Foz. E não era que a avenida estava mesmo ficando uma beleza?!
No escritório relatou o incidente, o pé, a banca, o fiasco, a baba… Ninguém pôde entender a razão de tanta alegria. Computador urgente! Necessário contar logo pra Letícia. Escreveu. Esperou. Esperou…dez minutos. Telefonou. A amiga tinha lido sim. Sim, e daí? Porque tanta empolgação? E os detalhes práticos? Telefone? MSN? Idade?
– Quantos anos? Chiiii! Credo, amiga! Tô fora! – Letícia tinha horror à meia idade.
– Ai Lê! É que você não o viu. É um gato!
– Hum, sei não Cássia Maria… o prazo de validade dele me parece vencido.
Desapontada com a falta de eco para o seu entusiasmo, Cássia Maria tentou concentrar-se no trabalho. Tarefa impossível. Após duas horas decidiu que já suportara tempo demais. Ligou para o consultório e com a maior cara de pau, se fez íntima:
– E aí? Tá fazendo o quê?
Foi enrolando um papinho besta, relembrou os acontecimentos, pediu desculpas de novo, contou que os colegas riram e blá, blá, blá… muita coincidência. Acaso? Será? Ah, você é novo aqui! Turistas… Falta de segurança.. muita violência em Foz! Férias, viagem…nossa!, um destino muito procurado, um pacote super acessível… e Santiago do Chile tem muitas opções… gelo, queria dizer, neve…esqui… você… lã… vinho… eu… pele… nós…
Casaram-se! Ela translumbrante. Ele translumbrado.
Lê foi madrinha junto com Rô. Chiquérrimos! Rô fazia questão.
Léo bem que tentou, mas quem agarrou o buquê fui eu. Afinal, ele e o Rô já marcaram até a data!
Cássia Maria e seu amado partiram em lua-de-mel.
Aposto que volta grávida… Abicha é uma coelha! Dos tornozelos inchados, o maridão cuida, simples cavacos naquelas mãos.
Adeus sapatinhos infernais. Ufa!
Assine as notícias da Guatá e receba atualizações diárias.