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Ela passa as madrugadas caminhando pelas ruas vazias, olhando os sinais da civilização deixados nas calçadas. A garota tem uma teoria: as manchas dos milhares de chicletes jogados no chão formam uma constelação misteriosa que se apresenta como versão fantasma das estrelas no céu.
Ele passa as noites observando seu peixinho desfilando pelo aquário esverdeado e aposentado na cômoda, olhando o bicho serpentear entres as pedras colocadas no fundo da jaula de vidro. O cara tem uma teoria: o desgraçado tá cavando um túnel entre os corais improvisados, preparando uma fuga holiwoodiana sem que ninguém perceba.
Os passos dela estão em slow motion, permitindo a ilusão de poder um dia contar quantas gomas de mascar mancham as passarelas. Os olhos dele estão bem abertos, em R.E.M. às avessas, vigiando inutilmente as ações daquele beta colorido durante toda a madrugada.
Valquíria jura que seu nome não foi dado ao acaso. Acredita que um dia vai decifrar o enigma do firmamento fantasma e abrir o portal para o Valhala. Ajoelha sobre o chão sujo e faz cálculos mentais incompreensíveis, enquanto forma uma linha imaginária entre a convergência dos círculos negros que refletem a luz dos postes e a formação celestial de Áries, o deus vermelho da guerra. A garota tenta captar alguma energia colocando a mão direita sobre a união dos traços invisíveis. “Parece que algo vai acontecer”, pensa em uma contida alegria junto à sua alma.
Gabriel tem certeza que foi agraciado com o nome angelical porque tem o poder de iluminar o caminho dos seres, mesmo que estes sejam peixes idiotas. Encosta o nariz e a boca no vidro, marcando a parede transparente com um esboço oleoso de caveira, enquanto profere palavras incompreensíveis para seu amigo aquático, que decide abandonar o passeio pelos arrabaldes da sua morada úmida. “O bicho quer escapar, antes que alguém dê por falta”, pensou o cara, adiantando o suposto plano do companheiro de quarto.
Valquíria começa a se arrepiar. Ouve um grito sinistro ecoando nos ouvidos, na espinha e na pele. Cambaleia sobre as juntas quando sente uma garoa leve efêmera, localizada somente sobre sua cabeça. Estica a mão para conferir a chuva e vem então a surpresa: sete gotas vermelhas em sua palma formam o caduceu de Mercúrio. Olha para o céu e percebe o reflexo do que pensa ser um portal cristalizado baixando, sumindo e aparecendo com o reflexo das luzes enquanto gira sobre o eixo. O monolito transparente vai ganhando dimensão enquanto se aproxima. “Consegui. Estou em sintonia com o paraíso! Quero deixar Midgaard e me juntar às guerreiras celestiais”, pede a jovem antes de ter sua voz abafada por um baque seco. Sua alma está lavada…
Gabriel começa a se irritar. Sente a traição iminente, levanta em um sobressalto e descola a casa retangular presa pelo tempo e a poeira na prateleira opaca. Cambaleia sobre seus pés enquanto tenta conter o peso da água sobre os braços em forma de carrinho de bebê. Perde o equilíbrio e tenta colocar o aquário no parapeito da janela. Ao baixar seu amigo, pequenas ondas provocadas pelo movimento brusco arremessam pingos que se pulverizam no precipício de concreto. Quando solta o vidro, solta um grito… Vem então a surpresa: sangue escorrendo de gigantescos sulcos abertos em seus punhos. Gotas escarlates são engolidas pelo vazio de 26 andares, enquanto a mente turva diante do parceiro colorido. “Você conseguiu. Agora vou prô inferno me juntar aos pecadores que não salvei. Vá para o céu e junte-se às almas angelicais”, diz o jovem antes de arremessar a jaula. Sua alma está manchada…
Junto aos primeiros raios de sol, o lixeiro encontra o corpo de Valquíria estendido sobre a calçada, cercado de pedaços de vidro . Uns setenta metros acima, o síndico se assusta com os pulsos cortados de um Gabriel caído ao lado da janela.
O peixe, colado sobre um chiclete derretido, parece pensar porque viu sua vida desmoronar juntamente com as de outras duas pessoas. De lado, com o olho petrificado e a pele enrugada, beta tenta compreender a imagem de uma guerreira levando o anjo sobre um cavalo alado em direção à luz antes de ser esmagado por um bêbado distraído.
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