Entardecer no rio Paraná (Foto: Áurea Cunha)
. Há cidades com barcos e cidades sem barcos. É a única divisão admissível, a única diferença verdadeiramente essencial. Fora dela, qualquer cidade tem uma torre, um armazém de víveres e um barbeiro que, afinal de contas, pode falar bem de Voltaire, como o do soneto, ou detestá-lo irreconciliavelmente. Esta pode ser capital, aquela, modesta e esquecida cidade sem história, ou com uma história recentemente escrita à força por seus dignos conselheiros. É possível que haja cidades com estátuas e cidades transitoriamente sem elas, ou que a mais afortunada tenha um bispo santo com suficiente sensibilidade para redigir suas pastorais em exâmetros gregos. Mas de qualquer modo, logo haverá cidadãos progressistas – porque de certa maneria todas as cidades os têm – que se decidam a aperfeiçoar as condições urbanas, se é possível a um extremo inigualável. E afinal de contas, a diferença fundamental continuará dependendo da ausência ou da presença dos barcos.
Dentro dessa divisão irremediável, talvez as mais tranquilas, as mais convencionalmente repousadas, sejam as cidades a cuja margem não crescerá nunca a alta e delgada flora dos mastros. As outras, em compensação, as cidades com barcos, estarão sempre transitadas por uma secreta pulsação, por essa inesgotável corrente que move a invisível cordoalha das viagens. Sempre farei o possível para estar nestas últimas, porque em cada barco que atraca, em cada barco que zarpa, há um ir e vir da mesma cidade; um vaivém de navio que nos ensina a estar sempre em instante de espera, em uma situação transitória que é como se em cada barco estivéssemos esperando a nós mesmos.
Cada cidade com porto é um pouco Holanda, embora seus habitantes não tenham batalhado contra o mar durante séculos para resgatar uma parcela de terra onde semear tulipas; é um pouco França, e todos os anos as rosas se tornarão duras, concretas, como se estivessem respirando a ar familiar das estufas; é um pouco Alexandria com uma parede branca de cal com sol e um imenso mercado à flor da água; é um pouco Grécia e um pouco Bombaim e quase completamente as ilhas do Pacífico, com pacientes tartarugas que fazem a digestão do tempo e com caracóis que põem canções retorcidas em vez de ovos. Todas as noites os barcos trazem às cidades a rêmora insistente, pedacinhos de arranha-céus e ônibus afundados de Baía de Hudson. E trazem jardins da Califórnia, minerais do Chile, cavalos e mulheres da Arábia, pegadas de homem sobre a neve da Rússia e noites muradas da costa do Labrador.
Cada vez que soa o apito de um barco à meia-noite, os dormentes da cidade com porto sentem que o sono se torna mais adequado, mais amigo e doméstico, e têm a certeza de que nada é impossível, nem desconhecido para além de seus travesseiros. Porque os dormentes sabem que o fio do apito não faz senão cortar a viagem, para ir deixando em cada porto pedaços de uma viagem integral, medida com todas as distâncias do mundo.
Ao amanhecer, o homem dos portos sabe se chegou um barco durante a noite por que à hora do café o pão sabe a forno apagado e o leite a estábulo conhecido, a bebedouro limpo, a pasto novo. E sabe se zarpou um barco porque não há em sua casa rosto que não lhe seja familiar, nem mãos que não tenham a linha do amor marcada com um sulco profundo. E em todos os portos da terra, enquanto os barcos navegam, há uma pura sensação de equilíbrio, uma certeza de estabilidade permanente, como se cada palavra, cada gesto do homem estivesse obedecendo o nível da maré.
E a cidade com porto sabe que, quando amanhecer mais tarde, é porque em algum lugar do mar houve um naufrágio.
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