Se já é quase consenso que devemos colocar mais ciência na pauta pública, a divulgação científica – que é a comunicação da ciência para o público não especializado – tem feito a festa com os novos meios de comunicação. Todos os dias, novos conteúdos de ciências de criadores de todo o mundo são compartilhados em plataformas como YouTube, mídias sociais e podcasts. Mas também se destacam novos usos que os divulgadores têm dado para velhos meios. Nesta categoria, a adoção da linguagem dos quadrinhos tem bons exemplos aqui na Universidade. Nesta quarta-feira (20), o biólogo e pesquisador da USP Luciano Queiroz e o cartunista Marco Merlin lançaram a tirinha Ciclos, que transformou em HQ os resultados de um artigo científico.
O objetivo do estudo que deu origem à tirinha, feito quando Luciano Queiroz ainda estava na iniciação científica na Universidade Federal de Goiás (UFG), foi estudar como acontece a colonização de riachos por insetos aquáticos. Os insetos aquáticos não são tão conhecidos e muitos deles sequer foram “batizados” com nomes populares. Libélulas, percevejos, besouros e mosquitos são mais famosos, mas nem por isso têm menos importância ecológica do que os efemerópteros, trichopteros e plecopteros – alguns dos personagens do HQ.
“Nós decidimos fazer nosso experimento em riachos intermitentes, que secam em determinada época do ano e voltam a encher no período chuvoso. Isso nos permite observar como um ambiente vazio, sem praticamente nenhum organismo, evolui com o tempo em relação às espécies que o habitam”, conta Bruno Spacek, o primeiro autor do artigo.
Dessa forma, autores esperam fazer chegar em mais gente os resultados alcançados no estudo, mostrando a importância dos insetos para a conservação dos ambientes aquáticos. “A combinação da linguagem visual e textual ao conteúdo científico facilita muito a compreensão dos conceitos mais abstratos ou técnicos”, diz o quadrinista Marco Merlin.
Em parceria com o projeto Dragões de Garagem, que produz conteúdo de ciência em diversas plataformas, Marco Merlin também publica, desde 2016, as Cientirinhas. “As pessoas adoram o formato, compartilham, marcam amigos e comentam”, conta Luciano Queiroz, que é também um dos criadores do Dragões de Garagem. “São tirinhas com geralmente quatro quadros e uma piada que dá o gancho para um conteúdo científico, mas que o leitor identifica como entretenimento”, diz o biólogo, ressaltando que esta é uma maneira de desvincular a ciência da forma por vezes até traumatizante como é ensinada na escola, atravessada por provas e “decorebas”.
“Como as ‘Cientirinhas’ deram super certo, pensamos se seria possível divulgar os resultados de um artigo no mesmo formato”, conta Luciano Queiroz, que atualmente é doutorando no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. Mas como a ideia era aprofundar o conteúdo apresentado, eles optaram por criar uma tira longa, seguindo um formato popularizado pelo site Zen Pencils.
Luciano conta ainda que, nesta tirinha, foi buscado um tom mais poético para falar sobre os ciclos, usando uma comunicação mais emotiva. “Sabemos que as pessoas se conectam pela emoção”, detalha o biólogo, ao explicar as ferramentas escolhidas para tratar de um tema que, por si só, poderia ser visto como pouco atraente – a vida de insetos desconhecidos pelos rios e lagos.
Nos Estados Unidos, trabalhando com uma disciplina talvez até mais temida que a biologia, o físico Clifford Johnson também acha que deveríamos ter mais conversas sobre ciências – assim como fazemos com temas como política, livros, esportes ou a última série lançada no Netflix. E os quadrinhos foram a maneira que ele encontrou de chamar o público para esse debate.
Johnson é autor do livro The Dialogues, em que nos convida a escutar uma série de conversas na forma de uma graphic novel, escrita e desenhada por ele, sobre “a natureza do universo”. As conversas acontecem em museus, trens e restaurantes e incluem desde a ciência da culinária até o multiverso e a teoria das cordas. Partindo da ideia de que a ciência é uma maneira de fazer perguntas para nosso ambiente e dar sentido a ele, todo mundo acessa a ciência, de uma forma ou de outra, no seu dia a dia. “Então vamos falar sobre isso!”, incentiva o professor da University of Southern California.
Para Johnson, os quadrinhos são uma plataforma ideal para falar de física. Ele diz que nunca se sentiu estimulado a fazer outro tipo de livro de ciência, dentro dos modelos que são esperados que pessoas de sua área escrevam, mas sim produzir algo que o afastasse desse estilo de autor ‘conferencista’. “A graphic novel está sendo reconhecida como um formato amplo que pode incluir muitos temas e atrair diversos tipos de pessoas. E está ganhando muitos leitores. Vários entusiastas de ciência já vieram me dizer que nunca haviam lido uma graphic novel antes, e meu livro as apresentou ao gênero, que agora elas adoram.”
Ele conta que trabalhar com artes gráficas também proporcionou alguns insigths para sua prática como cientista, enfatizando como símbolos podem ser “úteis e poderosos como forma de organizar pensamentos para abordar muitas áreas na pesquisa, seja para gerar novas ideias ou organizar novos cálculos”.
Na mão oposta, acredita que o pensamento sistemático adquirido na prática científica pode ajudar o autor de HQ em aspectos como identificar semelhanças e estruturas subjacentes ao estudar o seu próprio trabalho e o de outros. “Esses são tipos de abordagens que funcionam na ciência e têm aplicabilidade mais ampla. As artes gráficas e a ciência têm mais coisas em comum do que em geral se imagina”, revela.
Para quem está em dúvida se a HQ é uma boa forma de começar a fazer divulgação científica, Johnson diz que é sim possível começar nos quadrinhos, seja fazendo tudo sozinho, como ele, seja em colaboração. Mas o mais importante, primeiro, é ter algo a dizer, e então descobrir a melhor maneira de fazer isso, o público que se quer alcançar. “Isso determinará muito o meio escolhido. Cada um deles tem seus seus pontos fortes, e todos têm diferentes níveis de dificuldade de produção e de alcance em potencial. Mas encontre sua voz primeiro”, recomenda. Isso pode significar fazer projetos menores em um meio rápido e fácil, onde é possível experimentar, como um blog. “Por outro lado, você não terá um grande público imediatamente, mas tudo bem, porque você está descobrindo o que quer dizer e como dizer. A audiência virá mais tarde. Nada é desperdiçado e, como em qualquer campo, prática e experimentação são os passos mais importantes”, ressalta.
Ele defende também as formas mais tradicionais de interação dos pesquisadores com o público. “Não se esqueça de coisas como falar em museus locais, escolas, organizar um festival, clubes de ciências, cafés científicos, conversar sobre ciência no pub local, enfim… tudo que reúne as pessoas para se envolver com a ciência tem seu valor. Não precisa ser nada grandioso ou incluir mídia sofisticada. Todas essas modalidades podem enriquecer a cultura de muitas maneiras”, defende o professor. Como alguém que faz o que prega, Johnson costuma dedicar um bom tempo da sua rotina para conversar com não cientistas – e acredita que isso seja parte do seu trabalho.
NOTAS DE RODAPÉ:O artigo Successional colonization of temporary streams: An experimental approach using aquatic insects teve autoria de Bruno Spacek Godoy, Luciano Lopes Queiroz, Sara Lodi, Jhonathan Diego Nascimento de Jesus, Leandro Gonçalves Oliveira e foi publicado no periódico Acta Oecologica. A tirinha completa sobre o estudo pode ser acessada no site: www.lucianoqueiroz.com.br/ciclos.
O livro com a graphic novel The Dialogues, de autoria de Clifford Johnson, foi lançado pela MIT Presse em fevereiro de 2019, pode ser adquirido pelo site Amazon.
Mais informações: e-mail luciano@lucianoqueiroz.com.br, com Luciano Queiroz
______________________________ Texto: Luiza Caires / Jornal Usp
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